Aceito

Esta página utiliza cookies para melhorar o desempenho e a sua experiência como utilizador mais informação

Nave acima

-- “Ó Sôr Silvano, posso tirar-lhe o retrato?”, perguntei-lhe opresso pelo silêncio longo. Pensou três vezes e retorquiu, -- “É para alguma obra malina?” Lesto o conformei, -- “Acha? É pra prantar no feicebuque…”

Tópico(s) Artigo

    • 13:31 | Sábado, 05 de Dezembro de 2020
    • Ler em 2 minutos

    E lá ia eu a subir por andurriais poeirentos e casquinudos, rés de brejos, torgos e tojais, quando topo ao virar do esconso carreiral, junto a um talefe assentado e com ar estranhado, alheado cidadão…

    — “Salve-o Deus!”, lh’ atirei mansinho.
    –“E a vomecê que não falte”, me retorquiu, após escrutinada mirada.
    Pela virtude da saudação e rosto de olhar limpo nos apercebemos estar, um e outro, perante gente cristã. E vai daí, ao natural, quase meia hora de fina conversa ali fluiu, batidinha na lancha, como lagartixa ao sol.
    — “Sua graça?, demandei ao finar do cordo debate sobre os tempos pelos plainos tão quêdos.
    — “Silvano, para o servir…” e mudos ficámos.
    — “Ó Sôr Silvano, posso tirar-lhe o retrato?”, perguntei-lhe opresso pelo silêncio longo.
    Pensou três vezes e retorquiu, — “É para alguma obra malina?”
    Lesto o conformei, — “Acha? É pra prantar no feicebuque…”

    O Sôr Silvano, um felizardo rude e duro como a lage, não sabia o que tal coisa era, mas o nome não lhe terá soado a “rouba-almas”, pois anuiu… — “Tire lá, mas olhe que não vai bem servido co’a carantonha…”.

    Nesta palra estávamos quando de manso se achegou, desviada da passagem, moçoila atrigueirada e núbil, pestanuda, de belo buço e sinal negro na bochecha, num saracoté dengue d’anca requebrada, substituída a tamanquinha pela contrafeita adidas branca: — “Se estivesse a chover já tinhais alado…” pespinetou meio amena e metediça.


    Retorquiu-lhe o Silvano, que já devia conhecer a peça, — “Mal chegaste, sol poente!”

    E pronto, ali ficámos silenciados, amigos como dois vetustos faunos que se encontram à boca do matagal.

    Trocámos dois “passou-bens”, que um só parco seria e lá fomos, eu a findar a romaria, ele a recolher a leiteira do lenteiro…

    Os dias no planalto da Nave, singelos, ora feros ora amistosos, asinhos correm que a noute tomba cedo.

    Pena a taberna do Zévouga ficar arredada mais dum tiro de calabrina, pois à compita bem marchava o briol de um alvaroque sem negócio, só por louvor à serrania e aos já rareados silvanos.

     

    (Ilustração de João Hogan, in “O Homem da Nave – Serranos, Caçadores e Fauna Vária”, Ed. Bertrand, 2017)

     

    Gosto do artigo
    Palavras-chave
    Publicado por
    Publicado em Editorial