Enquanto forem só as estátuas…

Há uma geração que foi criada na violência. Em casa, no bairro, na escola. De acordo com os nossos padrões culturais de classe média exigimos-lhes comportamentos idênticos aos nossos. Uma ilusão.

  • 11:50 | Sexta-feira, 19 de Junho de 2020
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Todo o efeito tem uma causa. Partindo desta premissa, seria interessante percebermos o que está por trás desta onda de violência contra símbolos históricos e culturais pelo mundo fora.

Já aqui, mais do que uma vez, se condenaram os actos de vandalismo a que se tem vindo a assistir um pouco por toda a parte.

Mas o que e quem desencadeia a raiva, a fúria destruidora?


Cada vez mais se aprofundam as fissuras sociais a nível planetário. Dos continentes onde a crónica pobreza prolifera, dos estados onde a guerra infindavelmente impera, tem-se vindo a deslocar, essa pobreza em fuga, para os continentes ditos “ricos” – uma falácia, claro, pois nos continentes ditos “ricos”, se em geral a vida é melhor, as desigualdades são evidentes, havendo cada vez mais milhões de novos pobres.

Nas megapolis criam-se guetos para albergar os desfavorecidos da fortuna. Marginalizam-se e desprotegem-se os deserdados da sorte, fazendo emergir por todo o lado caldeirões ebulientes onde referve a frustração, a fúria, a desilusão.

Há uma geração que foi criada na violência. Em casa, no bairro, na escola. De acordo com os nossos padrões culturais de classe média exigimos-lhes comportamentos idênticos aos nossos. Uma ilusão.

A latente inquietação e óbvia consciencialização de um “não-futuro” não propicia e cria gente feliz, cordata e “alinhada”, antes uma imensa multidão muito zangada, inconformada, que encontra na rebeldia e no ataque aos símbolos do “establishment” uma forma de gritar a sua revolta e a sua proscrição.

Lembro-me de em França, em 1983, ter assistido à estreia do filme de Francis Ford Coppola, “Rumble Fish”, cuja acção decorre num ghetto novaiorquino. Causou-me uma profunda impressão. Ainda hoje, quase quatro décadas volvidas me vem à cabeça a mensagem premonitória ali transmitida. Convido o leitor a vê-lo…

Na sociedade actual onde mais que um apaziguamento e diluição das assimetrias se tem vindo a verificar o seu oposto, num crescendo de antagonismos onde a mínima gota é a gota que faz transbordar esta ira latente, provavelmente teremos muita sorte por a violência, por enquanto, se dirigir só a estátuas…

A utopia secular da sociedade mais justa, mais inclusiva, menos fracturante nunca passou de uma quimera, de uma fantasia de raros bem-intencionados que esbarraram na inamovível força dos muitos a quem essa sociedade causaria imensos prejuízos.

O crescendo da violência como rosto da exclusão não se combate com repressão, combate-se com integração e com humanidade.

Assim queiram os governantes de boa fé, não os trumps e bolsonaros por aí fora proliferantes…

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