Aquilino e o Dão

Em “O Malhadinhas” o António Malhadas da Barrelas de um Sino, escreve Aquilino: “veio a pinga, um cântaro de palhete, deste palhete das margens do Dão, que parece veludo no céu da boca e um homem sente fugir pela goela abaixo vivinho e ágil como um lagartixo para a sua lorga.”

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  • 8:06 | Domingo, 12 de Dezembro de 2021
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Outrora, o tratamento de dom dava-se a vilões melhorados, os “domnegos”, nos séculos XI a XIV, por próximos da nobreza.

O povo, de seguida, muda o Dom em Dão… e hoje, muito naturalmente e para lá de todas as possíveis corruptelas, falar do Dão é falar dos seus plurais dons.

Aquilino Ribeiro, na sua copiosa obra por meia grosa de títulos composta, lavra plurais excertos sobre gastronomia, onde a caça impera de mão dada com os produtos geralmente beirões, aludindo ao vinho tinto e do Dão, que regradamente nunca lhe faltou à mesa, até 1963, quando falece com 77 anos de idade:


Em “Caminhos Errados”, na novela “Salamaleque”, conta que na barraca da Malvina, na Feira de S. Mateus,:”Os dois amigos atacavam com mal disfarçado brio o terceiro pichel ao tempo que imolavam cada um a sua perdiz em molho de vilão. – Deus é grande – murmurou José Pais – que criou o céu para nele poderem voar estas aves com que agora nos estamos a regalar…!”

Em “O Homem da Nave”, falando de galinholas: “A sua carne rivaliza com a do faisão e rima com Dão, sendo de lamentar que a cozinha provincial, escrupulosa por sete, comece por esvaziar-lhe a tripa, que é, segundo Brillat-Savarin, o melhor dela, desfeito em molho de manteiga e cominhos”, para concluir em “Aldeia, Terra, Gente e Bichos, acerca da trindade degustadora: “ Três, isto é, a pessoa que a come, ela galinhola, a bem cozinhada, e uma garrafa de Dão.”

 

 

E é ainda nesta obra que nos fala do Freixinho, e do seu vinho:

“Nas faldas do monte de Freixinho, viradas a Poente, cria-se com o cisco que resulta da erosão das rochas, com os vapores que sobem do rio Távora, com o Sol que se aninha ali como galinha choca no ninho, uma ambrósia que faria morrer de gozo a velha de Esopo, que aspirava o rescendor da ânfora de Siracusa. Com aqueles três ingredientes e, é claro, a graça daquele nosso amigo que, embora uns graus abaixo de Deus, tem virtude, poesia, benignidade, sal, e malícia bastante para o tornar o mais delicioso dos homens, mormente quando recebe. E eu gostaria de ver os camaradas da patuleia liberal, melancólicos sob o peso da vida quotidiana, tão monótona como amarfanhante, de copo de vinho, aquele palhete miraculado, em punho. Bem decerto que a alegria, já receitada como a carne de vaca para a mantença dos franciscanos, actuaria neles como o melhor tónico do corpo e o mais doce e infalível indumento da alma. (…)

Quando se está na adega do querido Dr. Mota não é lícito raciocinar de outro modo. No fundo do copo, um copo que tem de ser do tamanho das crateras por que erguiam suas saúdes os heróis de Homero, eu asseguro que, além da alegria, uma alegria sã e honesta, se encontrará a verdade. Tudo o mais, histórias da vida, apoquentações, azedumes, zelos, cálculos ambiciosos se evaporam como pesadelos que são, avessos à constituição química e racional do homem. De resto, o vinho regrado aconselhava-o Cristo aos seus discípulos como viático salutar a par do bordão. E assim o aconselha o filósofo dos nossos dias. Mas é preciso que seja genuíno, pelo menos de três assobios, ágil, vivo, sem mescla, rescendendo aos aromas que guiavam as abelhas para o mato florido nas encostas do Himeto. O pior dos crimes é produzir vinho mau, engarrafá-lo e servi-lo aos amigos. Por isso o homem de paladar limpo arrenega daquele que é apenas espirituoso sem ser espiritual. Abençoado seja o agulha do Freixinho, que é isso tudo, voluptuoso, aromático quantum satis, lépido, rapaz de todo pelos anos fora, igual àquele que, segundo Renan, medrava nas escarpas amenas da Galileia.”

Em “A Via Sinuosa”,o padre Ambrósio assim se exprime: “Trouxe o taverneiro o vinho numa infusa de Molelos. Meu mestre encheu os copos e ao alto contemplou a transparência: — Boa cara tem, vejamos as obras. E, libando primeiro levemente, tombou o copo de boa gana. Apreciador, dando um estalo com a língua, tornou: — Não tem, certamente, o perfume das velhas ânforas de Siracusa, de que nos fala o poeta, mas não é para desprezar com este sol e esta estrada.” Ainda nesta obra, refere adiante: é um “vinho sobre cuja cepa passaram os sóis que pelam a serra e secam as fontes, e cujo segredo Satanás devia trazer do céu, porque, como as mulheres – diz o Eclesiastes – faz renegar os sapientes”.

Em “O Malhadinhas” o António Malhadas da Barrelas de um Sino, escreve Aquilino: “veio a pinga, um cântaro de palhete, deste palhete das margens do Dão, que parece veludo no céu da boca e um homem sente fugir pela goela abaixo vivinho e ágil como um lagartixo para a sua lorga.”

Em “Andam Faunos pelos Bosques” descreve: “a pichorra de vinho palhete, espirrante, a jogar ao ar camarinhas de alegria”.

Em “O Homem que Matou o Diabo” explana: “Numa estalagem dos quatro caminhos almoçaram trutas de córrego, regadas com um palhete dos sítios que passava titilando nas goelas e sabia a amoras e framboesas.”

No conto “A Grande Dona” in “Estrada de Santiago”: “E vá agora um naco de chibato, vá mais uma posta de lampreia, entorne-me este copo de malvasia, o moleiro ficou que nem um bispo na Quaresma.”

Em “Volfrâmio”, vem à colação o comilão Antoninho Fráguas, primeiro garfo do concelho, que assim se conformava: “Meio lombo de porco, um cabrito assado, duas molejas de vitela não requeriam para ele outra companhia além de seis ‘meninas’ do Dão.” Se nos lembrarmos que as seis meninas faziam 4 litros e meio… estamos conversados quanto a esta pantagruélica alma!

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