A geografia que trago no sangue

Os monumentos, na Gralheira, são os homens, rijos, crestados pela canícula dos estios e pela ventosa algidez das invernias longas; são os seus rebanhos de cabras; as suas vacas poderosas, pródigas e nédias; os seus podengos vigilantes, amparo de bordões contra as já raras lupinas investidas das famélicas alcateias.

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  • 12:38 | Sexta-feira, 10 de Dezembro de 2021
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O homem demorou milénios a tornar-se sedentário. A encontrar o lugar, o seu eixo crucial, para se instalar. Procurou os férteis vales, os córregos anchos de água e peixe, as florestas que davam protecção, madeira e caça, os montes que lhes davam a alongada visão sobre as planícies e onde ergueram as atalaias da defesa.

Há tempos fui à freguesia da Gralheira, concelho de Cinfães. A Serra do Montemuro inóspita, descabelada, ventosa foi outrora terra perdida de pastores e de transumâncias beiroas. Hoje, está semeada com um vasto e metálico “pomar” de antenas eólicas, gigantescas ventoinhas que atroam os ares já sem falcões, com um silvado zunido pouco consorciado com a paz das alturas, a dança das giestas, da carqueja e a imobilidade pasmada do granito.

As ordens religiosas das primícias da nacionalidade não lograram erguer tão alto a sua fé. E os vales do Paiva, do Vouga, do Távora… foram-lhes mais propícios à fixação e à catequização.


Os monumentos, na Gralheira, são os homens, rijos, crestados pela canícula dos estios e pela ventosa algidez das invernias longas; são os seus rebanhos de cabras; as suas vacas poderosas, pródigas e nédias; os seus podengos vigilantes, amparo de bordões contra as já raras lupinas investidas das famélicas alcateias.

Pequeninas as capelas. Uma ou outra igreja mais alargada no continente de fé. O homem da Gralheira está perto do seu Deus e conhece-o pelos seus agrestes rigores, fazendo de cada penedia ou lapa abrigo e santuário, como os druidas de antanho.

O homem de hoje nomadiza-se, de novo. Nesta cultura do efémero espartilhada pela tirania do tempo, o homem deixou de ser de um sítio, alienou a terra como fonte de riqueza e poder, renegou a casa e alberga-se nos quartos do mundo. Leva na bagagem os ténis, as jeans, o portátil, o telemóvel e o cartão de crédito. E insatisfeito, busca sempre algures, na polifórmica aldeia de hoje, o vale de ontem, a estepe do presente, o alto pico ou o deserto do futuro.

De novo, neste antropocentrismo mesclado de atopia, o homem desenganado das suas ilusões, persiste, ainda, na quimera da utopia, junto ao Nilo ou nos Andes, na Amazónia ou no Tibete. De preferência longe do seu semelhante ou na busca da semelhança no ser mais primevo, mais genuíno e ainda preservado pelas impermeáveis fronteiras geográficas.

Os Marco Polos de hoje, imbuídos do vitruviano espírito do “cinquecento”, num renascimento humanista tardio mas possível e em contradição com a imobilidade graciosa das ninfas de Botticelli.

As vidas, no corropio da passagem, dilatadas no tempo, tornaram-se curtas para a ânsia da descoberta. As naus de hoje não temem procelas nem cabos de tormentas. A tormenta é interior e passageira do e no homem em busca de uma verdade que o salve. É Charlie Chaplin no “Vagabundo” fugindo das “Luzes da Cidade”, “O Aventureiro” em ruptura com “Os Tempos Modernos” dos Estados ainda Unidos. A sobreviverem à crise de 1929 que arrastou à falência dez mil bancos e levou à fome e à desgraça milhões de pessoas. A memória é curta e a analogia perigosa, mas estes anos 30 estremeceram de tal modo o mundo, que tudo foi posto em causa, verdades seculares incluídas, fortalecendo o nazifascismo europeu e a eclosão dos fundamentalismos.

Percebemos hoje o homem sem topos. Na Gralheira ou nos Himalaias nega-se a ser a mera peça da engrenagem do sistema que corrói em cada dia que passa e na inóspita solidão, ao encontrar-se a si próprio, renova-se, talvez, na sua esperança e ilusão perdidas, ou que, ainda, recusa perder…

Tempos houve em que a solidariedade não era um vão clique no facebook. Lembro-me do sino tocar a rebate quando o fogo se alteava ou perigo se acercava, e do povo, esquecidas as quezílias, inimizades, rivalidades e ódios, acorrer aos magotes, as mulheres com baldes cheios de água, os homens com o varapau numa mão, a seitoira na outra. Hemingway escreveu, em 1940, sobre a Guerra Civil de Espanha, “Por Quem os Sinos Dobram”, alertando-nos, no seu introito, que eles dobram por todos nós.

Hoje, os sinos já não tocam a rebate e o campanário da Igreja deu lugar à sirene dos bombeiros. A deslocalização da crença redentora na fé para a “superioridade” da intervenção humana. O tempo da saudação “Salve-o Deus!”, transfigurado no “Olá!” fugidio e anónimo.

 

 

Aquilino, no Capítulo II de “Andam Faunos pelos Bosques” (1926) dá-nos um imenso fresco da solidariedade entre homens e do movimento da massa humana para enfrentar e combater o mal cadente:

“De nascente, a escalar a serra da Lapa ou as lombas do Carregal, rompiam as populações ribeirinhas do Távora…”

“Do setentrião avançavam os homens de Tarouca, Mondim e Sever com os párocos à cabeceira…”

“De noroeste haviam-se aparelhado para a acometida as povoações bárbaras de Várzea da Serra, Almofala, Monteiras e Quijó…”

“A todo o sul, das margens do alto Vouga, acudiram ao apelo (…) Ferreira das Aves (…), Tojal, Avelal, Mioma, Rãs…”

“Na raia sudoeste, o alvoroço ateara-se às tribos bravias de Pinheiro, Outeiro, Aldeia Nova, Águas Boas, Quintela da Lapa…”

“Mais adentro da periferia, as aldeias paivotas de Segões, Forles, Cabrasais, Lamosa, Granja, Vila Chã, levantaram-se com grande fúria e denodo…”

… E é talvez por ser esta a geografia que trago no sangue, e é talvez por serem estes os espaços das minhas andarilhanças de ontem e de hoje… que ainda sei, sinto e pressinto que no dobrar dolente de cada sino ecoa a sina de todos nós…

 

(Foto DR)

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