A verdade é uma palermice?

Estas fake news e estes boatos foram transmitidos, escritos e difundidos durante semanas para um milhão de eleitores, surtindo o desejado efeito na hora do sufrágio.

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  • 22:15 | Quarta-feira, 18 de Março de 2020
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O “Courrier internacional” deste mês, que recomendo vivamente, entre outros traz dois ensaios que se complementam, interessantes e importantes.

De Eve Illouz, “Sem Verdade não há Democracia” e de Michelle Goldberg, “O Triunfo da Desinformação”.

Centremo-nos hoje no primeiro onde a autora faz uma análise do valor da Verdade nos nossos dias e da sua cedência à mentira na maioria dos discursos públicos, políticos, informativos, publicitários, etc.


A autora no seu incipit escreve “A mentira é hoje tão comum no espaço público porque deixou de ser punida e, mais preocupante ainda, porque parece dar bons resultados.”

Questiona-se de seguida acerca das causas deste efeito e apresenta o conceito reinante de bullshit (que se situa entre “a treta, a mentira e a parvoíce”) como nova forma de discurso.

E logo fundamenta com a caterva de mentiras lançadas por Benjamin Netanyahu contra o rival Benny Gantz, que surtiram o efeito desejado para a sua vitória eleitoral.

Quando o primeiro-ministro israelita afirmou que Gantz era apoiado na sua corrida eleitoral pela Autoridade Palestiniana, uma notícia que foi difundida 5.559 vezes, e que Gantz era vítima de instabilidade psicológica e que mantinha relações extraconjugais, outra notícia que foi divulgada 701 vezes, ele sabia que o que afirmava era uma refinada mentira, mas mesmo assim esta parvoíce proliferou e serviu para enfraquecer o seu opositor, minorando-o psicologicamente e minando-o no seu carácter, perante um vasto público acrítico e pouco criterioso.

Estas fake news e estes boatos foram transmitidos, escritos e difundidos durante semanas para um milhão de eleitores, surtindo o desejado efeito na hora do sufrágio. Netanyahu terá assim ganho não pela excelência das suas propostas mas pela competência das suas mentiras.

O aparecimento de plurais meios de comunicação de massas, sejam a radio, a televisão, a internet e a sua insaciabilidade para servir ao público ávido a notícia fresca e sensacionalista, levaram à necessidade de dizer qualquer coisa, num confuso ruído de incessantes parvoíces. As parvoíces que o público gosta de ouvir, raramente se questionando da verdade ou mentira daquilo que lhes é transmitido.

Entretanto o pós-modernismo trouxe novas ideias sobre a noção de verdade centrado no facto de poderem existir várias verdades sobre um mesmo assunto ou uma mesma realidade.

“Se a verdade é coerciva e obscena – obscena por ser coerciva – porquê apontar o dedo aos mentirosos? Uma vez que deixou de ser um bem comum e se tornou algo que cada um possui em privado, a verdade não passa agora de uma diferença de opiniões, tanto no plano moral como no plano factual. Por conseguinte as ‘verdades alternativas’ de Donald Trump não são mais que a conclusão lógica do raciocínio pós-modernista: se toda a verdade depende do ponto de vista e dos valores de quem a profere, então Donald Trump pode legitimamente dizer que havia uma grande multidão no National Mall no dia da sua investidura, que Barack Obama não nasceu nos Estados Unidos da América ou que os imigrantes mexicanos violam as mulheres norte-americanas. Afinal todas estas afirmações são reflexos fiéis dos seus valores.”

O luminoso ensaio de Eva Illouz fecha desta forma: “a tirania apostou sempre na nossa negligência, na nossa apatia ou na nossa estupidez, para esmagar a verdade. A verdade continua a ser uma arma necessária para combater os tiranos e todos quantos dizem palermices.”

Agora se revertermos esta narrativa para a informação de certos tabloides, o telelixo que nos é servido abundante e quotidianamente e para o discurso reiterado de certos políticos, inclusive em Viseu, percebemos porque usam a mentira e a parvoíce com tal desplante e total à vontade…

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