À mesa não se envelhece!

Os nossos escritores, nos milhares de suas saborosas e fecundas páginas, têm sempre um cantinho para a petisqueira. Por exemplo Aquilino, em "Andam Faunos pelos Bosques"... a Maria Ruça para o padre Tadeu “frigia uma boa febra de porco com fígado do mesmo, o fígado do suíno beirão que é melhor que de vitela e se dissolve formando um molho sobre o grosso que é o regalo dos regalos”.

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  • 16:43 | Domingo, 03 de Outubro de 2021
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“Aqui entre nós, lamenta-se o canto fúnebre do prato regional, da fradesca arte da cozinha, dos sarrabulhos, das sardinhas recheadas, do assado em lenha de azinho. Come-se mal, mas, em contrapartida, sabe-se muito de dietética. Inaugura-se um grande hotel, o mestre da cozinha é formado em Matemáticas; os super-mercados são dirigidos por professores de línguas ou até graduados em Direito comparado. Doutora-se o lombo de vaca, passa-se um diploma ao chispe e ao paio industrial. Não podemos falar francamente; há sempre o risco de ofender um amigo, um bom rapaz que até faz sacrifícios pela família, tem o seu negócio, a vida custa.”

Alegria do Mundo II”, Bessa-Luís, A., Guimarães Editores, 1998

 


Sem ser um “fin gourmet” ou “cordon bleu”, atributos que deixo ao meu amigo Pedro Calheiros, sou daqueles que se pela por um bom petisco, dos que, apesar de frugais nas suas costumeiras rotinas, gosta de comer e se dá, com gosto, à superior arte de bem amesandar.

Porém, perante as proliferações, cópias e invenções escorridas da alta culinária gaulesa, sou um provinciano primário. Por isso, na minha agenda gastronómica, prima o cozido à portuguesa, o escoado beirão à moda da Nela*, o grão de bico com bacalhau, a feijoada transmontana, a lampreia à bordalesa da Casa Matos, o empadão de massa tenra, a vitelinha à Lafões dos Três Pipos, as enguias fritas da Murtosa, o bacalhau à Gomes de Sá, à Brás, à Zé do Pipo, com natas, à moda de minha Mãe, o bísaro leitão bairradino do Vidal, os rojões da Casa do Avô, as iscas de cebolada do Zacarias, as trutas do Paiva em escabeche, os nacos maroneses do Abel, mirandeses, arouqueses, as amêijoas à Bulhão Pato, o cabrito assado à moda da Zeta, o ensopado de rodovalho à moda do Dory, a sopa de pedra, as tripas à moda do Porto, a punheta de bacalhau à minha moda , o bacalhau com broa à Pedro Loureiro, o arroz de salpicão das Portas do Montemuro e mais uma centena deles, que eu não sou áspero de boca e fico melancólico quando antigas “catedrais” como o João do Grão fecham suas portas rendidos à “modernidade” que, em matérias de bacalhau adregou a ter fina continuidade dada pelo José Bandeira, ao Beato, na Casa do Bacalhau, ou no Baptista do Bacalhau, ali para Areias de Vilar, em Aveiro.

E já nem falo de sobremesas: uma Barriguinha de Freira, o pudim Abade de Priscos, os ovos moles de Aveiro, os pastéis de Vouzela, o Papo de Anjo, o Toucinho do Céu, o gelado de vinho do Douro da Foz do Távora, as Cavacas da Veiga, as pêras bêbadas, o pudim de Martaínha, as Ferraduras à Prima Lena… tudas e muitas mais de se lhe tirar o chapéu.

 

Os nossos escritores, nos milhares de suas saborosas e fecundas páginas, têm sempre um cantinho para a petisqueira. Por exemplo Aquilino, em “Andam Faunos pelos Bosques“… a Maria Ruça para o padre Tadeu “frigia uma boa febra de porco com fígado do mesmo, o fígado do suíno beirão que é melhor que de vitela e se dissolve formando um molho sobre o grosso que é o regalo dos regalos”.

Eça de Queirós, em “A Cidade e as Serras” … “Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: — É divino! – Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde — um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo.”

Outros, a respeito da descaracterização da cozinha , insurgiam-se como Fialho de Almeida: “Isto é gravíssimo! A desnacionalização da cozinha é para mim, talvez primeiro que a dos sentimentos e ideias, revelada pela vida pública, o primeiro avanço da derrocada dos povos”, e mais acrescentava “Um povo que defende os seus pratos nacionais defende o território. A invasão armada começa pela cozinha”.

E para acabar pois alongou-se a parlenda, parafraseio meu avô Hilário, que fazia vinho tinto de 17º, de cêpa velha, na quinta do Ladário e era um dilecto apreciador de almôndegas de lebre “À mesa não se envelhece!”. E está quase tudo dito, não fora ainda esta frase da sábia Agustina: “… um homem que fuma durante as refeições comeu muito mal na infância.”

 

 

(Fotos Rua Direita)

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