O Aposentado

No dia exacto em que fez 40 anos de trabalho, pediu a aposentação. “Já chegava“, disse. Na manhã seguinte, meteu um atestado médico e ficou em casa a aguardar que lhe dissessem quanto iria receber. Era menos do que no emprego mas, em contrapartida, acabava a rigidez dos horários e teria todo o tempo necessário […]

  • 9:43 | Terça-feira, 18 de Fevereiro de 2014
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No dia exacto em que fez 40 anos de trabalho, pediu a aposentação. “Já chegava“, disse. Na manhã seguinte, meteu um atestado médico e ficou em casa a aguardar que lhe dissessem quanto iria receber. Era menos do que no emprego mas, em contrapartida, acabava a rigidez dos horários e teria todo o tempo necessário para as coisas de casa que nunca foram terminadas por razões várias, entre as quais, o cansaço, e, a maior parte das vezes, a preguiça. Estas, sempre se sobrepuseram as outras mais justificáveis. “Corpo que trabalha, quer descanso“, desculpava-se perante a mulher.

Nunca fora um tipo muito habilidoso de mãos mas presumia saber de tudo um pouco. A vida de funcionário público, pedia-lhe mais que apresentasse uma unhas limpas, do que sabedoria em substituir uma tomada eléctrica ou uma torneira. Portanto, tratou sempre de defender a sua imagem atrás do balcão de atendimento ao público: um casaco e uma camisa branca sempre fizeram milagres. No inverno juntava-lhes uma gravata e uma camisola de malha, e, às vezes, parecia ele o chefe da repartição. E merecia ter sido! Entrara para o Estado quando regressara do Ultramar onde passara 20 e tal meses em Timor. A guerra, por ali, só a da cerveja fresca! Achava que tinha capacidade para chefiar a repartição, mas nunca o promoveram. Agora, de saída, que se lixassem todos. Desta vez teria tempo para arranjar o estendal da roupa estragado há anos, caiar os muros já verdes de tanto musgo, substituir as telhas que se esfarelavam no telhado da garagem, passear o estupor do cão, ir ao parque com os netos que a filha e os 3 filhos lhe deram, e, o mais interessante, para se baldar nos sábados à tarde e ir bater as cartas no salão dos bombeiros ou no Rabiça. Ah! E as couves! Iria semear um talhão de couves. A costela de agricultor aparecera com a idade. Era altura de dar aso às ambições hortícolas.

Uma vida de trabalho e sacrifício, merece um justo descanso!”. E fazia as contas: “40 anos, eram 480 meses, 2.080 semanas, 14.600 dias, 116.800 horas e mais de 7 milhões de minutos. Já viram? 7 milhões de minutos!“. A esta contabilidade tão organizada, a mulher respondia: “E as férias, e as faltas, e as saídas prá tacita de branco, e as baldas no serviço externo? Quantos minutos são? Desconta lá isso, homem!“. Aí, fazia ouvidos de mercador. Como fazer-lhe entender que até as noitadas nos copos, as comezainas ao fim da tarde, a tal “tacita de branco“, as conversas sobre futebol e outras coisas salutares para o dia-a-dia de um funcionário do estado, eram uma forma suprema de contactar os contribuintes, de lhes ouvir as reclamações, de lhes dar a conhecer as leis da república, de os ajudar nas malhas intrincadas da legislação, de os ensinar a serem cidadãos mais cumpridores e melhores pessoas. Este trabalho, fora do horário, nunca fora reconhecido por ninguém! Fora um funcionário exemplar dentro da repartição e, principalmente, fora da repartição. Quantos passariam as suas horas livres em missão de cidadania? Que ele se lembrasse, ninguém! Isto, ela não entenderia, portanto, que se contentasse com os tais “7 milhões de minutos“. E, na verdade, quantas esposas se poderiam gabar que o marido se reformara aos 65 anos, com tantos milhões de minutos de trabalho?


Meses depois, lá veio a novidade: 1.300 euros de reforma à qual haveria que deduzir o IRS. Não era muito, mas teria de dar. Criara os filhos com bem menos e com a ajuda das batatas e das galinhas dos sogros. Agora já crescidos, lá se iam amanhando nuns empregos rascas. Não eram doutores, mas tinham trabalho, o que já não era mau. Ele e a Maria, que nunca trabalhara num emprego remunerado e que lhe desse direito a qualquer benefício com a idade, aguentar-se-iam com os tais 1.300 euros. Tinha um carro com 15 anos que comprara em segunda mão e pago em prestações de 7 contos e quinhentos, não comprara casa porque a herdara dos pais, nunca se metera em cavalarias financeiras e a mulher era uma óptima substituta de aspiradores e máquinas de lavar. A sua vida bancária não entusiasmaria uma beata falsa. Nunca conseguira poupar, mas também não devia aos bancos. Por isso, o valor atribuído, não era bom nem era mau, chegava.

Com a reforma concedida e publicada no Diário da República, deixaram de lhe doer as costas e desapareceu a dor de cabeça permanente, que tinham dado origem aos contínuos atestados médicos que o mantiveram afastado da repartição durante os meses de espera.

E lá cumpriu algumas das promessas que guardara para esta fase da vida. Mandou arranjar o estendal, pintou o muro numa campanha intermitente de 8 manhãs de sábado, pediu ao vizinho que era trolha e lhe devia alguns favores burocráticos que lhe substituísse as telhas da garagem, foi por 2 vezes passear um neto ao parque, aproveitando para ler “A BOLA” e foi poupado ao passeio com o cão, porque, entretanto, o rafeiro foi atropelado pelo camião de recolha do lixo. Quanto às tardes de sábado, era outra coisa: uma promessa é para cumprir e nunca falhou uma vez sequer. Ah! As couves nunca chegaram a nascer.

Com o passar dos tempos, os 1.300 euros foram minguando. Corrigindo: eles não minguaram, davam era, cada vez mais, para menos! Tudo subia: a conta da luz, a conta da mercearia, o gaz, o pão, a gasolina…e a sua tensão. Desta vez a dor de cabeça era real e, arrastado pela mulher, foi ao Centro de Saúde. Diagnóstico: colesterol elevado, triglicéridos nos píncaros e a tensão arterial a oscilar entre os 12, mínima e 18, máxima. O médico disse: “Travões a fundo, meu caro! Você já não é um carro de corrida! Agora é um calhambeque! A continuar assim, o único sítio onde chega rapidamente, é ao cemitério“. Saiu dali com mais uma despesa às costas: uma catráfia de medicamentos que, para não fugir à regra, no mês seguinte, subiram de preço.

A vida foi-se tornando cada vez mais difícil e os cortes no orçamento caseiro, eram semanais. Os netos já só recebiam um presentito mixuruca no Natal. As prendas dos filhos resumiam-se ao jantar da Consoada e, nos aniversários, o bolo da festa, passou a ser um pão-de-ló barrado de açúcar em ponto com as velas penduradas no topo.

Este fim-de-semana, morreu em frente do televisor durante o noticiário da noite. Em causa, uma notícia que o deixou completamente eufórico e lhe estourou com a tensão arterial, não se contendo em gritar para a Maria: “Vem cá ver o resultado dos meus 7 milhões de minutos. Valeu a pena! Recebo tanto de aposentação como o Presidente da República!”. A comoção foi demais! Finou-se ali mesmo!

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