O PAPEL DA PHANTASIA NA PERCEÇÃO DO FUTURO I

O phantasma constitui em si mesmo a construção psíquica primordial fundada sobre a experiência precoce. Assim, o ato de phantasmar, sendo já uma transformação da experiência em si, pulsional e constitucional, é substancialmente diferente do ato de fantasiar.

  • 22:15 | Sábado, 28 de Novembro de 2020
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Maria José Martins de Azevedo[1]

 

A potencialidade da psicanálise, enquanto ciência avançada da psicologia, constitui um instrumento privilegiado para a investigação e para a compreensão da experiência do tempo. Tal investigação implica a tomada em consideração de três fatores psíquicos básicos (Freud, 1911) a saber: a perceção, a memória e a consciência, ou self-awareness (Arlow, 2016). Para este autor, a investigação da temporalidade não se completa sem a dimensão da fantasia inconsciente (Arlow, 2016), a qual constitui o quarto fator decisivo no processo.


Estes quatro fatores operam na relação psicanalítica através do suporte do observador, representado na análise pelo psicanalista, cujo papel é duplo: o de facilitação e o de monitorização. Assim, se por um lado o psicanalista ou o psicoterapeuta desempenham o papel de facilitador na oscilação que ocorre entre a perceção e a autoconsciência do tempo, por outro, ele detém o papel da sua monitorização através da técnica psicanalítica que compreende a interpretação, a relação de transferência e o setting. Como se efetua este processo? A resposta compreende o papel determinante da fantasia na perceção do tempo.

Tanto para Arlow (Arlow, 1969a, 1969b) como para Klein (Klein, 1946) ou Isaacs (Isaacs,1952a) as perceções sensoriais do tempo do presente são determinadas, apercebidas e construídas pela influência de fantasias inconscientes. São estas fantasias que são vividas na transferência e por esse meio entram na esfera da relação analítica.

Para Isaacs a relação de transferência é quase integralmente uma relação fundada sobre o phantasma inconsciente. Este conceito, por si criado, foi mais tarde grafado com ph, distinguindo-o do conceito pré-existente de fantasia (King & Steiner, 2005). Para Isaacs o phantasma constitui a expressão mais primeva da pulsão e, por esse facto, revela a realidade do inconsciente. O phantasma constitui em si mesmo a construção psíquica primordial fundada sobre a experiência precoce. Assim, o ato de phantasmar, sendo já uma transformação da experiência em si, pulsional e constitucional, é substancialmente diferente do ato de fantasiar.

Podemos deduzir que para Isaacs a perceção do tempo radica na expressão corporal, constituindo a phantasia do tempo a sua primeira transformação ou representação psíquica, facto que coloca a aperceção do futuro indissociavelmente ligada, ou mesmo apoiada, sobre os elementos somatopsíquicos e sensoriais da vivência corporal.

O conceito de phantasiar de Isaacs difere do de «fantasiar» em Arlow, desde logo no que respeita à sua radicalidade de origem. Assim, se para Isaacs o phantasma é a expressão psíquica da própria pulsão e a vida de phantasia abrange todos os mecanismos e todos os processos mentais (Hall, 2018), já para Arlow o conceito de fantasia inconsciente afasta-se da pulsão e assemelha-se à conceção do «fantasiar» como um tipo de mecanismo mental, aproximando-se de Freud e da conceção de «fantasia» como fuga à frustração. Damos deste último processo o exemplo da fantasia de realização num futuro, enquanto fuga à incapacidade vivida pelo sujeito no presente, processo que não representa um verdadeiro ato de esperança ou de fé em si, mas sim o seu contrário: a descrença em si, corolário do défice de autoestima depressivo.

Para Arlow, a fantasia representa um entre os diversos modos de pensar inconscientes. Essa divergência não afasta, contudo, estes autores da interpretação do tempo quando subordinada à idiossincrasia do inconsciente e da vida em si mesma.

A conceção de phantasiar, e da correlata phantasia inconsciente, criada por Isaacs constituiu um conceito charneira de uma mudança fundamental no pensamento psicanalítico. O conceito de phantasia introduziu, segundo Ogden (Ogden, 2012), um corte radical com a época que ele designa de Freud-Klein, fazendo a ponte com as conceções de Bion e de Winnicott e introduzindo um novo estádio na evolução do pensamento psicanalítico. Bion e Winnicott, partindo de diferentes pontos de vista e desenvolvendo diferentes formulações teóricas, vão, contudo, centrar-se nos processos psíquicos mais precoces da vida, nos quais a imbricação do somato-psíquico é total.

O conceito de phantasia fornece a Bion o chão concetual, quer para a conceção dos elementos beta, oriundos do proto mental, quer para a conceção da sua transformação em elementos acessíveis ao pensamento, mediante a função alfa. Quanto a Winnicott, o conceito de phantasia inspirou-o para a conceção de uma área de ilusão ou espaço potencial da criação, a qual constitui a terceira área da mente humana, sem a qual a definição da criatura humana está incompleta: não será possível descrevê-la usando como referências unicamente a diferenciação entre os espaços psíquico e real, interno e externo. Falta a terceira área da experiência humana, a da criatividade.

É do desenvolvimento desta área de ilusão proporcionada pelos cuidados da mãe suficientemente boa provedora do holding e do care ao bebé que se transitará do brincar à adaptação e à partilha da realidade, de uma fase de total imersão e de adaptação do meio às necessidades do ser, até à progressiva separação. Justifica-se deste modo a frase emblemática de Winnicott de que «there’s no such a thing as a baby» (Winnicott, 1960), expressão que assinala esse espaço criativo invisível, mas totalmente existencial, entre aqueles dois seres. Aos olhos do observador estão duas pessoas presentes no ato de mamar: a mãe e o seu bebé. Mas naquela fase inicial de ilusão a realidade é outra, porque a mãe dá de mamar a um bebé que é ela, e o bebé mama de um seio que lhe pertence: é este o paradoxo ou a ilusão primordial, donde decorre a assunção de que não se deverá perguntar nem resolver o paradoxo «de quem é esta pertença, ou ideia: sua ou minha?», pois neste estado de imbricação ilusória a resposta ou a resolução do enigma representaria uma perversão.

 

BIBLIOGRAFIA CITADA

 

ARLOW, Jacob A. (1969a) «Unconscious Fantasy And Disturbances Of Conscious Experience» in The Psychoanalytic Quarterly, Vol. 38, pp. 1-27.

ARLOW, Jacob. A. (1969b): «Fantasy, Memory, And Reality Testing», The Psychonalitic Quarterly, Vol. 38, pp. 28-51.

ARLOW, Jacob. A. (2016): Psychoanalysis And Time, Pennsylvania State University from apa.sagepub.com.

FREUD, Sigmund (1996 [1911]): Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental, pp. 231-244, Vol.XII, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,1996.

HALL, Kristy (2018): The Stuff of Dreams. FAntasy, Ansiety and Psychoanalysis, Routledge, Oxon.

ISAACS, Susan (1966): «La nature et la fonction du fantasme», pp. 64-114, in KLEIN, Melanie; HEIMANN, ISAACS, Susan; Paula; RIVIÈRE, Joan (1966 [1952a]): Développements de la psychanalyse, [Developments in Psycho-Analysis, London, Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1952] avec un préface de Ernest Jones, traduit de l’anglais par Willy Baranger, Paris, Presses Universitaires de France.

KING, Pearl & STEINER, Riccardo editors (2005): The Freud-Klein Controversies 1941-45, UK, Routledge

KLEIN, Melanie (1985 [1946]): «Notas sobre alguns mecanismos esquizoides», in Inveja e gratidão e outros trabalhos 1946-1963, Vol. III das Obras completas de Melanie Klein, São Paulo, Imago.

OGDEN, Thomas H. (2012): «Lire Susan Isaacs: vers une révision radicale de la théorie de la pensée», in L’Année Psychanalytique Internationale, 2012/1, Vol. 2012, pp. 141-163.

WINNICOTT, Donald W. (1983 [1960a]): «Teoria do relacionamento paterno-infantil», in O ambiente e os processos de maturação, Porto Alegre, Artes Médicas, [«The Theory of the Parent–Infant Relationship», in The International Journal of Psychoanalysis, Vol. 41, pp. 585–595].

 

 

 

[1] A autora é Psicanalista, Titular em Psicoterapia, Formadora em Psicoterapia Psicanalítica e em Psicanálise em Portugal e na Société Européenne pour la Psychanalyse de l’Enfant, membro da l’Adolescent International Psychoanalytical Association e da European Psychoanalytical Federation. É autora de três livros: de psicanálise, de ensaio psicanalítico e de ficção psicanalítica.

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