O fim, Florbela

Repousam nadas no meu regaço de trinta e seis anos. Repousa também a solidão que aprendi a respeitar. Sozinha me vi e sozinha me vejo, sem amigos, sem pais, sem amores. Sozinha perante mim, minha fiel e constante companhia de quem me cansei. Fatalmente, cansei-me de mim.

  • 18:11 | Segunda-feira, 04 de Janeiro de 2021
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8 de Dezembro de 1930.

Faço hoje 36 anos.

Nestes trinta e seis anos andei perdida pelo mundo, na vida e sem norte. Crucifiquei-me e fui crucificada no sonho e pela sorte. O meu destino foi andar de luto, sempre de luto. Incompreendida, sempre incompreendida, chorando as minhas lágrimas e chorando lágrimas alheias sem saber o porquê, nem o porquê de ser olhada sem ser vista.


Nestes trinta e seis anos deambulei sonâmbula pela vida, vaga, absorta, com a tez mortal de quem traz o frio no ventre, o terror no olhar, a incapacidade do sonho e esta dor intensa, esta tristeza mórbida, este tédio que me fazem pensar na morte, no sono eterno.

Nestes trinta e seis anos amei, ó se amei! Amei tanto que o amor, que não me cabia no peito, transformou-se em dor. Na dor intensa que carrego e me tortura até à demência, até à vontade doida de gritar a mágoa que me habita, a angústia que me agonia e me causa os vómitos que nenhuma tisana, nenhuma droga acalma. No fim de contas o que eu quis mesmo foi amar, mas amar perdidamente, cantar os inúmeros amores, loucos talvez, mas amores. Cantá-los em todo o seu esplendor e ao cantá-los perder-me para depois me encontrar.

Nestes trinta e seis anos, prestes a ser pó, cinza, nada, procuro dentro de mim uma outra vida, em que ri e cantei. A primavera tinha então a cor e o cheiro das papoilas rubras a despontar no meio de searas. Procuro e só encontro uma boca pálida, dolorida num rosto ebúrneo de monja fustigada pela clausura.

Nestes trinta e seis anos, em que viajei no reino de aquém e de além dor, quis que o astro que me arde dentro, transforme o amor que tenho por este, por aquele, por toda a gente, em poemas que mordem ao mesmo tempo que beijam, em poemas que suspirando pelo infinito condensam num grito manhãs de oiro e cetim sobrevoadas por um condor com garras de poesia.

Repousam nadas no meu regaço de trinta e seis anos. Repousa também a solidão que aprendi a respeitar. Sozinha me vi e sozinha me vejo, sem amigos, sem pais, sem amores. Sozinha perante mim, minha fiel e constante companhia de quem me cansei. Fatalmente, cansei-me de mim.

 

Um frasco de veronal já foi. Bebi-o de uma vez. Outro repousa naquela mesinha baixa, num alcance breve do meu braço.

Tenho nas mãos os diários onde vou anotando pequenas coisas do dia-a-dia. Nada de especial. São mesmo as pequenas coisas que me inquietam e me dão este frémito que não me deixa descansar. Nunca descanso, nunca tenho um sono calmo e pleno. A agitação faz parte da minha alma, tomou conta do meu ser, apossou-se do meu corpo fermente.

Abro ao acaso o último caderno. Calhou Abril, dia 20. Escrevi: “esta amálgama grosseira e feia, grotesca e miserável, saberia fazer versos?”. Sim, estou feia, grotesca, miserável, uma velha que chegou a meio das três dezenas de anos. “Viver”, escrevi com a minha letra angulosa e fina, “procurar o sentido da vida, sem mesmo saber se algum sentido tem, é tarefa de poetas e de neurasténicos”. Ora eu, que sou uma e outra coisa, por mais que procure, não encontro esse sentido. Talvez porque não sou assim tão poeta, nem tão neurasténica como me julgam. Sou só a Bela que na vida anda perdida… Na entrada do dia 28 digo que já “não tenho forças, não tenho energia, não tenho coragem para nada. Sinto-me a afundar. Sou um ramo de salgueiro que se inclina e diz que sim a todos os ventos”. Nada mudou desde aí. Piorou até… e o ramo flexível de salgueiro, que sou, está prestes a quebrar-se e a ser levado pelo vento.

Estranha sonolência toma conta de mim… quase pareço flutuar ao mesmo tempo que, pela primeira vez, uma inusitada paz me invade.

Desfolho as folhas que restam do diário… tão pouco tenho escrito… umas curtas frases pontuadas por profundas reticências…A 2 de Agosto, risquei: “está escrito que hei-de ser sempre a mesma eterna isolada… Porquê?” perguntava-me… não tenho resposta e mesmo que tivesse, a resposta já chega tarde, pois parto para o máximo isolamento – o eterno.

Ainda escrevi em Novembro. Três entradas. A 20 questionava a morte: será definitiva ou transformadora? “mas o que importa o que está para além?” Que importa se a dor, o sofrimento, o medo, o pânico acabam, como acaba também a paixão, que é o amor levado ao delírio. Porém, “seja o que for, será melhor que o mundo!” que a vida, que esta vida que me estava fadada e eu não quero, nem posso aceitar.

A 2 de Dezembro escrevi a última frase: “E não haver gestos novos nem palavras novas!”… e como a sinto tanto nesta mão quase inerte e sem força para pegar na caneta de aparo dourado e traçar os últimos versos, o último soneto, o derradeiro poema…

Estou a ficar tão cansada. Pesam-me as pálpebras e sinto-me mergulhar num sono profundo. Num sono que nunca conheci. Sem sonhos. Sem pesadelos.

O outro frasco de veronal espera por mim. Olha-me desafiante. Faço já um esforço gigantesco para estender o braço e abraçá-lo com a mão direita. O caderno com o diário dos últimos meses caiu-me do colo. Repousa agora, semi-aberto, na carpete ponteada por rosas debotadas.

Como uma garra, não a de condor mas sim a minha mão direita, agarro o frasco de veronal. Bebo-o lentamente esta ambrósia que me vai levar ao Olimpo, morada de deuses, sumamente jovens, sumamente adúlteros, sumamente humanos.

E uma paz desconhecida inunda-me, toma tão misteriosamente conta de mim que me vejo a recitar o segundo terceto do meu soneto Mistério: “Talvez um dia entenda o teu mistério / quando inerte, na paz do cemitério / O meu corpo matar a fome às rosas”. Talvez o esteja a entender agora…

Um aroma perturbante chegou até mim… das rosas não foi, que rosas não há já no meu jardim, talvez um perfume de crisântemos, flores do tempo dos mortos.

Tenho tanto, mas tanto sono … ao longe ouço o barulho ondulante das searas do meu Alentejo, da charneca que todos os anos floresce e não vou ver mais…

Apeles chama-me e eu vou…

 

Descia a tarde sobre o mar encapelado de finais de Outono. O tom plúmbeo deixava adivinhar uma breve tempestade, tanto mais que as gaivotas aninhavam-se nos telhados e, ao cheiro do pescado que se amontoava nas conserveiras, ocupavam as praças e as ruas da cidade já deserta. O frio cortante e húmido provindo do oceano entrava sem pedir licença na espaçosa sala aberta para uma varanda corrida. Bela não ouvia já o grasnar das gaivotas, nem podia franzir o nariz agoniado ao odor que subia das fábricas de conservas. Declinada sobre o braço da cadeira forrada de veludo ouro-velho, com o colar de pérolas enleando-lhe o pescoço delicado e a franjas da echarpe de seda rojando o chão, Bela dormia, pela primeira e última vez, o sono dos justos.

Muitos anos mais tarde, um poeta escreveria: “Boa noite / eu vou com as aves”… Eugénio não estaria a pensar em ti, Florbela, quando escreveu este verso… Mas tu foste mesmo com as aves, as mesmas aves que te acompanham cada vez que alguém te lê…

 

Dezembro 2020/Anabela Silveira

 

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