NOSSO SENHOR DOS PASSOS-PADROEIRO DOS CEIREIROS

      Em memória de minha avó ceireira.     A Beselga, freguesia do concelho de Penedono, é hoje, como as demais freguesias que a envolvem numas poucas léguas de distância, uma aldeia cativa desse funesto destino que foi a emigração de que retorno se não apercebe e o abandono revela-se no casario fechado, […]

  • 10:27 | Quinta-feira, 16 de Março de 2017
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Em memória de minha avó ceireira.

 

 

A Beselga, freguesia do concelho de Penedono, é hoje, como as demais freguesias que a envolvem numas poucas léguas de distância, uma aldeia cativa desse funesto destino que foi a emigração de que retorno se não apercebe e o abandono revela-se no casario fechado, nos alpendres desertos, nas ruas sem caminheiros, no deserto em que se tornaram as lameiras, os campos de pão, as margens da ribeira.

Da terra vinha esse pão de um tempo de memória, do centeio, de algum trigo, do milhão, do linho, da castanha, do feijão que assim ditam os corógrafos antigos, o Padre Manuel de Azevedo que escreve em 1758 e D. Joaquim de Azevedo, um pouco mais de cem anos mais tarde.

O primeiro, no relatório que integra as Memórias Paroquiais (1758), ainda não fala das ceiras, essa “indústria” caseira a que D. Joaquim de Azevedo, na História Eclesiástica da Cidade e Bispado de Lamego (1877) dá relevo maior: “tem fábrica de esteiras de esparto, ceirões e outras obras, que vendem para os engenhos de azeite e para esteirar as casas, ou para assentos, o que tem grande consumo nos lugares da comarca”.

Nessa época, e vai já um século e meio, os ceireiros moviam-se já por léguas largas com seus burricos carregados de ceiras para as azenhas das redondezas e os demais artefactos com que esteiravam chãos de cozinha, lojas de serão, capachos de alindar soleiras de porta de lavrador ou mais fidalgas, frios soalhos de quartos de dormir, bancos de igreja, assentos de confessor.

Voltavam depois da carga vendida, avaras moedas e provavelmente, pelo menos alguns aceitassem pagamentos em natureza, não sabemos.

É por essa época, com o ofício já enraizado, que o bom do Padre Cristóvão de Nossa Senhora do Patrocínio, a aceitarmos a legenda, introduz na Beselga o culto de Nosso Senhor dos Passos, devoto desse Senhor da Paixão assim invocado e estabelece-o na antiga Capela da Senhora da Encarnação ou da Lameira, a um tiro de pedra do centro da aldeia, como se dizia e daí se enraíza, como o ofício, a devoção.

Os passos dos ceireiros alargavam-se, entretanto, para além da comarca. Machitos tropeteiros, como o do Malhadinhas, lá arcavam com a carga. Azenhas apetrechadas, pregões à boca de uma rua, uma porteira aberta, sobre o entardecer, o machito acolhido em casa de lavrador conhecido, a manjedoura com feno, duas mantas no cabanal, a malga de caldo, pão e vinho que trouxe a lavradeira e a rota batida ao outro dia, até poder regressar, montado agora no machito.

E a mulher que ficara rezando com os filhos pequenos, sobre a noite vazia. – “Senhor dos Passos te guie!…” E a promessa de joelhos e as voltas à capela, verão findo, e o óbulo na bandeja, que o ceireiro regressara em paz, duas moedas para comprar um chão, levantar sobrado. Esquecidos por um tempo os passos sofridos, feridas saradas, as da saudade e tantas outras, quem sabe.

Talvez o ceireiros, mais esses vagamundos de caminho vário, sentissem o Senhor dos Passos como seu irmão. Feridas que demoravam a sarar, suor de sangue, as quedas repetidas, um cireneu que sempre há, uma promessa que Ele ouvia, a mão estendida sobre a mão calejada do irmão.

Talvez se tenham afeiçoado assim, os ceireiros e o Senhor dos Passos, talvez por isso o carreguem agora no andor, em procissão, poupando-lhe assim algumas dores.

Talvez por isso o tenham escolhido para patrono. Que ninguém mais os compreenderia assim.

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Fotografia: Penedono. Beselga. Tradicional tapete ou capacho de junça, muito usado na soleira das portas e aos pés da cama.

 

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