Doçaria de Sernancelhe: a propósito das queijadas de castanha

Paralela tradição vinha do povo, o criador desses saberes ancestrais que também tornaram doce a nossa mesa, descendo ao mesmo povo, democráticos, sem que lhe possamos atribuir data concreta, depois do uso na casa dos senhores.

  • 14:09 | Segunda-feira, 20 de Fevereiro de 2017
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Sernancelhe, o território do actual município, inscreve-se na área geográfica das aquilinianas Terras do Demo, não tanto no seu cerne, nas terras de montanha dos altiplanos da Nave e da Lapa onde são cáusticos os verões e gélidos os invernos, onde apenas medravam as searas de pão e as ervagens do gado, onde sempre foram minguados os mimos das hortas, da vinha e das fruteiras; estendeu-se também às mais doces cercanias do vale do rio Távora onde a terra já foi pródiga, onde já podia dizer-se que corria leite e mel como na bíblica Terra Prometida, metáfora do trigo, do azeite, dos ovos, do vinho. E aqui se adensou a gente em povoados e aqui se instalaram, nas margens do rio ou pouco distantes, as monjas do Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, da Ribeira, as Recolhidas de Freixinho, as monjas do Mosteiro da Senhora da Assunção, da Tabosa do Carregal. E foram estas mulheres, em comunhão mais próxima com o céu, quem criou, para os homens seus irmãos, os manjares que lhes adoçaram a vida ou a tornaram menos agra. Foram elas, a crer na tradição, quem inventou a inigualável receita das cavacas de Freixinho, ou o engenhoso manjar de trigo, ovos e queijo, os ditos fálgaros festivos que, mesmo sem a doçura do açúcar ou do mel evocam para nós o inventivo afã da cozinha do mosteiro.

Paralela tradição vinha do povo, o criador desses saberes ancestrais que também tornaram doce a nossa mesa, descendo ao mesmo povo, democráticos, sem que lhe possamos atribuir data concreta, depois do uso na casa dos senhores.

E ei-los, o pão-de-ló, o pão-leve da linguagem popular cobrindo as mesas de casamento, as camponesas, ou, em dia de Páscoa, a mesa do folar, às vezes com desenhos enramados de açúcar em ponto acertado.


E o arroz-doce com desenhos de canela nas travessas das mesas de noivado, na curiosa tradição que o servia aos homens da tosquia ou em dias de festa do orago.

O leite-creme com a capa leve do açúcar tostado, esse era manjar de fidalguia, raras donas o sabendo preparar.

Bem do povo eram as filhós, esse mágico ritual na oficina da cozinha, farinha de trigo amassada com fermento, o tempo de levedar na quentura da fogueira, a caldeira de cobre, o azeite a ferver e o desenho da massa nas mãos da mulher e a obra-prima que se polvilhava de açúcar e pousava, enobrecido, sobre a mesa na festa do Natal.

E as fritas, que agora apenas se chamam rabanadas, pão de trigo cozido, às fatias, albardadas de ovos no azeite da sertã, e o merendeiro que seguia na bolsa ou no alforje em dias de feira ou romaria.

E a sopa-seca, singeleza de pão e leite, que era uso em Carnaval.

E as papas de ralão, milho maís em farinha de moleiro, que às vezes se adoçavam, nos trabalhos de Verão.

E os biscoitos caseiros, essa preciosa vulgaridade que vinha do forno, e se guardava, disponível para amigo que chegava, na arca ou na masseira.

E o doce da Teixeira que se comprava numa feira, E os beijinhos e as “santinhas” de açúcar” de pendurar ao peito e que se compravam na banca da mesma vendedeira.

Memórias. Felizmente redivivas.

E depois as queijadas de castanha. Também invenção de uma mulher, em nossos dias.

Que de castanha não havia tradição em doçaria.

As queijadas de que falo são também forma de pão. São invenção, decerto, de mulher que esconde, isso pertence, o segredo costumado por detrás da cartela escrita da receita. Que esta diz assim:

As castanhas serão colhidas nos soutos de Sernancelhe antes que se soltem as chuvas demoradas de Novembro. Descascar-se-ão amorosamente sentadas as mulheres num banco de lareira. Depois coze-se, ao lume, lentamente, a quantidade requerida. Al lado, na lareira ou no fogão, ferve-se a água, o açúcar, o limão, vinho do Porto e o pau perfumado de canela. Torna-se a castanha em puré. Somam-se as gemas de ovos e as claras batidas em castelo. E tem de haver o tempo certo para cada coisa acontecer. E as forminhas de metal guardadas no armário. E o forno aquecendo em lume brando. E o milagre de vê-las cozer. E logo a festa de uma travessa enramada sobre a mesa. Bandeja ou um prato pousado sobre linho, desse fino, como aquele que fiava em Nazaré Nossa Senhora.

Água na boca. Gente à roda celebrando a invenção de uma mulher.

Dona Dina. Que ficará na história. Como a casa-mãe, o Restaurante Flora (Sernancelhe).

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