As palavras… um punhal ou orvalho apenas

Durante anos usei pedagogicamente esta asserção para início das aulas de Didáctica da LP... porque ela é incisiva, sintética, bem-humorada, clara e concentradora de uma das falhas mais graves de um comunicador.

  • 20:09 | Segunda-feira, 30 de Março de 2020
  • Ler em < 1

A fala é irreversível, é essa a sua fatalidade. O que foi dito não se pode emendar, salvo se for aumentado: corrigir é, aqui, estranhamente acrescentar. Ao falar, nunca posso apagar, safar, anular; tudo o que posso fazer é dizer “anulo, apago, rectifico”, em suma, falar uma vez mais. A esta singular anulação por acrescentamento chamarei “engasgamento”. O engasgamento é uma mensagem duas vezes falhada…
— citei Barthes, Roland, in “O Rumor da Língua” (ed.70 – 1987)

Durante anos usei pedagogicamente esta asserção para início das aulas de Didáctica da LP… porque ela é incisiva, sintética, bem-humorada, clara e concentradora de uma das falhas mais graves de um comunicador, denotadora de incerteza, deficiente preparação sobre um determinado tema, atrapalhação, falta de clareza de raciocínio, hesitação e inépcia expressiva.

Deslocalizada para o contexto da nossa vida quotidiana… quantas vezes essa “irreversibilidade” não nos foi fatal? Quantas vezes não proferimos nós a palavra desajustada/errada que tudo daríamos para não ter empregado? Quantas vezes, no “calor de uma refrega”, quando o coração se sobrepõe à razão, não dizemos em 10 segundos aquilo pelo qual toda vida tão caro pagaremos?


Porém, certo é que depois de saída da boca, a fala, por mais que corramos atrás dela, não mais a apanhamos, restando-nos o frequentemente improfícuo remendo da emenda. Mais um “engasgamento”…

E por associação ocorre-me Eugénio de Andrade, o bardo…

 

São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Cultura