A ressurreição dos vivos

No pico da guerra contra o inimigo invisível, há milhares que se organizam numa solidariedade sem precedentes neste século; e há os que escolhem agredir médicos e idosos com medo da infeção.

Texto Patricia Maia Noronha Fotografia Unsplash (DR)
  • 20:29 | Terça-feira, 21 de Abril de 2020
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O Covid 19 aterrou num mundo onde a velhice, a morte, as coisas últimas da vida se escondem sob filtros do Instagram, selfies com sorrisos impecáveis e promessas de eterna juventude. Veio recordar que permanecemos simples mortais, que o final abrupto pode estar ao virar da esquina.

No pico da guerra contra o inimigo invisível, há milhares que se organizam numa solidariedade sem precedentes neste século; e há os que escolhem agredir médicos e idosos com medo da infeção. Há quem sonhe com a emergência de uma sociedade mais humana; e há os outros, aqueles que usam o medo para erguer muros e reforçar as trincheiras do ódio.

Na Roma Antiga, a consciência da brevidade da vida era cultivada. Quando um general romano regressava de uma conquista, a cidade organizava uma gloriosa receção. Enquanto seguia pelas ruas eufóricas, um homem acompanhava o cortejo sussurrando ao ouvido do general: «Respice post te. Hominem te esse memento. Memento mori.», «Olha ao teu redor. Lembra-te que és um homem. Lembra-te que irás morrer» (tradução livre).

No século XXI deste mundo ocidental, o Memento mori foi obliterado. A brevidade da vida (e suas consequências ou exigências) não é discutida em público nem nas escolas nem entre as famílias, onde até a morte de animais domésticos é ocultada das crianças para que não se confrontem com a dura realidade. E no entanto, lembra a filósofa brasileira Viviane Mosé, «é no momento em que ganha consciência da morte que o Homo sapiens sapiens valoriza a vida». Teremos agora, perante esta ameaça global, a oportunidade de uma transformação interior onde a vida humana, a nossa e a dos outros, ganha um novo significado?


 

Mas nós nunca aceitamos a noite sem remédio

 nem a treva por substância do destino:

 percorre-nos uma íntima ansiedade

 de salvação até ao último momento,

— já sem nada a dizer e sem acreditarmos,

 já com tudo contado, pesado, dividido,

 é fatal que inda a esperança persista no limite

 e por isso vivemos e nos comove a vida.

Vasco Graça Moura

 

Medo da morte = ignorância perante a vida

Epicuro proclamava que a consciência da mortalidade é um privilégio. O filósofo grego inspirava mesmo os seus alunos a «matarem a morte». «É em vão que se sofre por esperar qualquer coisa que não nos causa qualquer perturbação. Assim, o mais temível dos males, a morte, nada tem a ver connosco: quando somos a morte não é, e quando a morte é somos nós que já não somos», diz na sua “Carta sobre a Felicidade”.

Ampliando os conselhos de Epicuro, que tanto admirava, Séneca afirma: «O que eu tiver feito de útil [em vida] ficarei a devê-lo à morte». Nas “Cartas a Lucílio”, o filósofo romano insiste que aqueles que sabem viver, saberão também morrer ou, usando as suas palavras, «o medo perante a morte» revela «ignorância perante a vida».

E para Séneca, tal como para Epicuro, saber viver era simples: aprender, educar, investir no amor pelo outro, recusar a futilidade. Terá sido assim, diz a história, sem assombro, que Séneca recebeu e aplicou, a si próprio, a pena de morte ordenada pelo Imperador Nero.

 A diabólica imortalidade

Tal como os seus ancestrais colegas – e avançando, a passos largos até ao século XX – o filósofo inglês Bernard Williams via a possibilidade de uma vida eterna como uma prisão. Por oposição, a morte representava liberdade. Segundo Williams, a imortalidade levaria o Homem a perder os seus propósitos de vida, impossíveis de constante renovação, caindo numa monotonia mais diabólica do que a morte.

Mas Bernard Williams distingue duas formas de morrer: a morte precoce, que interrompe a vida, e a morte natural dos idosos. Na opinião do filósofo inglês, a primeira passível de lamentação, ao contrário da segunda. Em suma, a morte é bem-vinda desde que chegue na hora certa.

Podemos estender esta filosofia a um ponto oposto: aquele em que se tenta adiar a morte quando a vida já não o é. Em Cannes, na estreia do seu filme “You Will Meet a Tall Dark Stranger”, Woody Allen admitiu que gostaria de viver até aos 100 anos, como Manoel de Oliveira, mas só se preservar a independência e a dignidade do realizador português: «Não quero viver até aos cento e tal arrastando-me num carrinho de metal e a babar-me». Com a discussão da eutanásia a ganhar espaço, a liberdade de escolher uma morte digna pode vir a prevalecer. https://www.youtube.com/watch?v=OdlzMTVwaAc&feature=emb_logo

Amar a vida enquanto mortais

Maria Filomena Molder lembra que a «mortalidade é inevitável, mas nós podemos amar a vida enquanto mortais.» Numa entrevista ao Diário de Notícias, a ensaísta e filósofa portuguesa defende que não «podemos deitar fora a condição [de ser mortal], ou libertarmo-nos dela, mas podemos aceitá-la, e daí pode vir um sentimento, uma emoção forte, de alegria.»

Mas para alcançar essa «alegria» é necessário que nos confrontemos com a condição humana, confronto esse muitas vezes evitado, lembra a norte-americana Joan Didion, no seu livro “O Ano do Pensamento Mágico”: «Somos seres  imperfeitos, conscientes da nossa mortalidade ao mesmo tempo que a empurramos para longe, […] tão conscientes que quando choramos os nossos mortos choramos também por nós próprios. […] Pelo dia em que deixaremos de existir».

Porque a morte representa, diz o neurocirurgião João Lobo Antunes, no livro “Memória de Nova Iorque”, «o cancelamento abrupto das coisas boas da vida.» «Eu diria, contudo, que o principal abalo que sofremos [ao encarar a morte] é no sentido do tempo, não só do tempo vivido, mas também do tempo por viver, o tempo do futuro imaginado».

A obsessão com a imortalidade

Na ausência de uma cura para a sua mortalidade, o homem tem procurado soluções criativas como a imortalidade da alma prometida pelas religiões. Mas Lobo Antunes garante que nem a fé profunda pode alterar a perceção da vida e da morte. «Testemunhei a revolta violenta [de crentes] que não aceitavam resignar-se à vontade de um Deus omnipotente e impiedoso.»

Mais sofisticados, mas tão frágeis quanto os restantes, os gurus da tecnologia preferem acreditar na imortalidade digital. Raymond Kerzweil, da Google, e Elon Musk, o milionário da Tesla, investem milhões em projetos como a empresa Neuralink com o objetivo de digitalizar o cérebro humano que assim poderá, sonham, ganhar autonomia face ao corpo percetível depois de este sucumbir.

Nem todos seremos estoicos ao ponto de encarar com um sorriso a brevidade da nossa passagem pelo mundo, mas talvez os filósofos estejam certos quando dizem que viver uma vida plena pode ser o caminho para uma morte feliz. E o segredo para, como diz Filomena Molder, «amarmos a vida enquanto mortais». (mudar no MEDIUM)

Memento Mori coletivo

Anestesiados pela ditadura consumista das últimas décadas, desvalorizámos afectos, valores, direitos. Querendo ter, mais do querendo ser. Quem sabe se podemos transformar esta pandemia num memonto mori coletivo e conquistar uma nova consciência do valor da vida enquanto indivíduos e sociedade? Porque a verdadeira mudança não chegará através do 5G, nem de carros sem condutor, nem de sofisticados drones, nem mesmo através das redes sociais, essa quase-religião de discurso ultra-simplificado que congrega tantos fiéis.

Não será por aí, como não foi com engenhos que se deram as grandes revoluções. Foi dentro da cabeça das pessoas que surgiu a coragem de abolir a escravatura, derrubar ditaduras, de tornar o ensino e a saúde um direito universal. A próxima revolução, a acontecer, será a partir da capacidade de nos questionarmos. De que lado queremos estar? Dos que vivem com medo da morte, dos vírus, dos outros? Ou dos que exigem da vida uma plena liberdade?

 

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