Os pequenos donos

Um favor, um jeitinho, uma atenção, uma distracção, um lapso, um esquecimento, uma sugestão. Um tabuleiro pegajoso de benefícios e vantagens.

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  • 18:45 | Segunda-feira, 24 de Novembro de 2025
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Há quem lhes chame fácticos, há quem os adjective de pequenos. Critérios e perspectivas. No que verdadeiramente importa, uns e outros batem certo, convergem no propósito.

Não é o apodo que os diferencia, nem a substância, nem o embrulho. Nada os afasta. Tudo os junta, numa solidariedade vocativa. Eles, os seus titulares, que escondem as mecânicas, ajudam, encaminham, facilitam, influenciam. Abrem portas e janelas. Decidem, sem avisar. Dominam as micro-coisas, nas sombras dos dias.

Têm também o seu lado mau. Atrasam, complicam, subvertem, distorcem, condicionam. Não lhes damos relevância, mas ganham espaço e sequazes, Têm território. Existem como se não existissem, quase invisíveis. Despercebidos, vivem num estado de iluminação caseira. Mexem os cordelinhos que sustentam os equilíbrios domésticos. Deixam pegadas disfarçáveis, um lume de vento as apaga. Figuras pálidas ou rosadas, magras ou anafadas, são eficientes.

Não devem ser ignorados ou desvalorizados. Discretos, vivem num quase anonimato, num limbo entre o inócuo e o imundo. Distantes da exuberância do afinador de tesouras que no seu pífaro estridente angaria clientela, repousam num existir de silêncios. Alimentam-se de aparências, municiam-se de suposições.


A Administração Pública está enxameada de funcionários que os usam, com artes deslavadas e manejos subreptícios. São donos e senhores de uma forma de andar. Um favor, um jeitinho, uma atenção, uma distracção, um lapso, um esquecimento, uma sugestão. Um tabuleiro pegajoso de benefícios e vantagens. Urgências que marcam passo, insignificâncias que viram prioridade, numa girândola fluorescente de ultrapassagens e arrecuas. Eles rompem a burocracia, evitam papeladas, contormam prazos, ensinam expedientes. Não os defendo, não os elogio, mas não os vitupero, não crucifixo. Fazem parte do sistema. Se não fosse assim, talvez ainda fosse pior, neste ramerrame que enjoa, uma salmonia que nos traz agoniados. Conjecturo e especulo, apenas e só.

Num país habituado a viver décadas, de mão estendida e chapéu descabeçado, pedinchando côdeas de pão, este vício torna-se uma necessidade de arranjos. Nem sempre se objectiva o alcance de prejuízos de terceiros, razão sublime por que é entendida, tolerada, aceite.

Num provérbio luso, albarda-se o burro à vontade do dono, mísero como o plebeu, exigente como o fidalgo. No emaranhado de condescendências soltas e laivos tímidos, faz-se a lavagem do incorrecto e do inevitável. Erguem-se altares, pálios e salmos para a cultura do desenrasca, do mais à mão. Diz-se que não vem mal ao mundo, e não. Que o rio corre igual para a foz, e sim. Que, tudo baldeado, faz uma deliciosa sopa de nabiças, que o que importa é barriga cheia e odre feliz.

Ninguém escapa a esta teia de cumplicidades, que, com ligeireza de carteiristas, desfazem nós e encruzilhadas, e que se mantêm activas e vivas, apesar da mudança de regime. A inclinação para o disfarce e para a sabotagem das virtudes não prescrevem, e o seu fim não se anuncia, não se decreta. Escorrem como fluidos orgânicos por um país rectangular e estreito, que encontra o excelso destino no purgar das suas maleitas.

Por entre dores e analgésicos, levantes e tonturas, veio-me à ideia, como uma luz que brilha ao fundo do túnel, dissecar os interstícios dos pequenos donos, artífices do expediente, artesãos do esquema. Presentes, muito para além dos regimes, numa ataraxia duradoura, quase perpétua.

 

Rebelo Marinho

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Publicado em Opinião