Ricardo Araújo Pereira declarou, em mais um episódio do “programa cujo nome estamos impedidos de dizer”, que tanto lhe faz se ganha a esquerda ou a direita. Se ganha a esquerda, fica bem com a sua consciência. Se ganha a direita, paga menos impostos. Disse-o com o ar banal de quem já não habita o país real, de quem observa o povo com uma sobranceria tão polida quanto bem remunerada.
Aquilo que Ricardo confessou, sem vergonha nem sentido de responsabilidade, revela uma vida à margem da luta política, embora beneficie de todos os seus resultados. É o homem que comenta o jogo com sarcasmo, mas nunca entrou em campo. Representa a elite que já não sente nada porque tem tudo.
O modo como trata o debate dos pequenos partidos é particularmente revelador. Todos os anos, anuncia que esse é o seu dia preferido da campanha, o “dia mais feliz do ano”. Para ele, trata-se de um desfile de excentricidades, um buffet de bizarrices que alimenta sketches fáceis e memes de fim-de-semana. Essa abordagem contribui para a asfixia de qualquer hipótese de alguém novo entrar no sistema político com seriedade. Mesmo os que tentam fazer diferente, pensar diferente ou propor soluções são esmagados por uma troça que tudo nivela por baixo. Nada escapa ao escárnio. Tudo é ridículo por definição.
Surge então o espanto quanto ao apodrecimento do sistema. Questiona-se porque ninguém novo entra, porque são os mesmos de sempre permanecem ou porque o discurso antipolítico vence. Os chavões utilizados por Ricardo e os seus companheiros, mesmo embrulhados em ironia e boas intenções, poderiam ser ditos por qualquer populista de extrema-direita. A ideia de que todos os políticos são iguais, que ninguém presta, que o país é uma anedota, que o voto é irrelevante e que os ricos ganham sempre serve de música de fundo para os ouvidos do Chega. Funciona ainda como pano de fundo ideal para o seu crescimento.
Ao declarar que tanto lhe faz quem governa, porque de uma forma ou de outra sai sempre a ganhar, Ricardo Araújo Pereira anuncia que já não acredita na política como ato moral. Afirma implicitamente que já não distingue entre ser cidadão e ser consumidor. Reduz a participação cívica à contabilidade do saldo bancário. Lança o caos e sai de mansinho…
Existe, no entanto, uma diferença. Há sempre uma diferença entre quem luta e quem se ri, entre quem arrisca e quem comenta, entre quem acredita e quem desistiu. A democracia começa a morrer quando até os mais inteligentes desistem de pensar. Quando o povo se torna apenas matéria-prima para o riso fácil, instala-se o vazio. Uma democracia que vive a gozar com quem trabalha não tarda a ser substituída por um regime que trabalha contra quem ri.
A extrema-direita cresce também por causa disto. Porque os seus adversários acham que basta fazer troça. Porque os humoristas que dizem combatê-la vivem num mundo onde o riso substituiu a coragem. Porque quem tem palco, mas recusa a responsabilidade de o usar com seriedade, transforma-se em mais uma engrenagem da máquina que finge criticar.
Ricardo pode continuar a rir. Quem vive cá fora, no entanto, não está a achar graça nenhuma.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor