Morto no mar não identificado

A estratégia do Governo de incorporar o discurso populista, no que toca à imigração, traduzir-se-á numa vitória da direita radical que prosseguirá a sua cavalgada até à “vitória final”. Os imigrantes não são, como nos querem vender, um perigo.

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  • 8:02 | Terça-feira, 15 de Julho de 2025
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Pepin Escandell, de 55 anos, aos 28 abraçou a profissão de coveiro em Formentera (Espanha). Estava habituado a sepultar pessoas com nome e apelido. Nos últimos anos, o seu trabalho aumentou. São muitos os mortos, que saem das entranhas do mar, cadáveres de migrantes afogados, na sequência de naufrágios, durante as rotas ilegais das “pateras” (pequenas e frágeis embarcações), repletas de africanos que chegam às Ilhas Baleares, partindo do norte da Argélia. Homens e mulheres jovens que procuram uma nova vida, colocam-se nas mãos das máfias, e morrem na busca agónica de um futuro. São corpos que ninguém identifica, que ninguém reclama, cadáveres sem nome, inchados, em decomposição, irreconhecíveis pelo efeito do mar.

Pepin escreve junto à sepultura apenas cinco palavras: “Morto no mar não identificado”.

A protagonista do romance de estreia, do poeta brasileiro Paulo Teixeira, Não Digas o que a Baiana Tem (Caminho, 2025), “Sabe, de antemão, que os pobres serão os primeiros a afogar-se”. Quando não se afogam, engrossam o contingente das vítimas da aporofobia, repulsa ou preconceito em relação aos pobres ou à pobreza.


A população imigrante, residente em Portugal, atingirá, em 2025, segundo estimativas do Governo, 1,6 milhões de pessoas, quase três vezes mais dos que os 592 mil cidadãos registados em 2019. Não podemos cruzar os braços e esperar que a integração ocorra por geração espontânea e que não surjam problemas. Os desafios sucedem-se para quem recebe e para quem é recebido. Andou bem o Governo quando priorizou as migrações e procurou desenhar uma estratégia que permita controlar as chegadas e garantir as condições mínimas de integração, combatendo a extorsão e desrespeito das máfias. Há riscos claros, quando se pretende passar do 8 para o 80. Decalcar, ou mesmo “roubar”, o discurso da extrema direita comporta riscos. Preocupa-me que a todo o momento sejam atirados números das notificações para abandono do país e dos ilegais, focando a comunicação, apenas, no que há de negativo. Acabar ou dificultar o reagrupamento familiar é um erro crasso. Não haverá melhor forma de integração, aprendizagem da língua, do que a entrada dos filhos nas escolas.

Não será nada conveniente que, para responder às necessidades de mão de obra, em determinados setores, proliferem grupos de homens, jovens, desenraizados, sem saber a língua, com usos e costumes diferentes. A célula familiar é fulcral!

Temo, ainda acredito que não venha a ser assim, que o Governo crie dois sistemas de legalização, de reagrupamento familiar e de naturalização, um para as elites e outro para os indiferenciados. Queremos escolher os “nossos” imigrantes, criando imigrantes de primeira e segunda classe? Parece que sim. Os detentores de Autorizações de Residência para atividade altamente qualificada, para investimento (os controversos vistos gold) e portadores de blue card da União Europeia beneficiam de um regime de exceção, face a todos os “outros”, a grande massa de “descamisados”, pobres, problemáticos, invisíveis e indesejados. Estes, os tais “outros”, que servem de alimento aos discursos racistas e xenófobos, terão que ter um período mínimo de dois anos de residência legal antes de poderem requerer a vinda dos familiares.

Faz caminho, apesar de todos os relatórios provarem o contrário, a ideia (uma mentira repetida muitas vezes, torna-se uma verdade) de que a criminalidade está associada à imigração. A desigualdade é um terreno fértil para a criminalidade. Atacar os mais vulneráveis da sociedade, muitas medidas são-lhes dirigidas, potencia a desigualdade e, consequentemente, a criminalidade e a insegurança. Seria interessante, embora mais complexo, atacar a criminalidade económica, os crimes de colarinho branco, a corrupção e as máfias globais que vão exercendo as suas influências esmifrando quem pouco ou nada tem e que não consegue ser livre e sujeito de direitos.

A fixação nos pequenos delitos cometidos por imigrantes invisibiliza os grandes crimes económicos e financeiros. De acordo com o último Boletim Económico do Banco de Portugal (2019-2024), os trabalhadores estrangeiros são fundamentais para o mercado de trabalho e concentram-se, essencialmente, nos setores menos bem pagos, indiciando que a maior parte destas pessoas terá níveis de qualificação pouco elevados. Já se fizeram ouvir os representantes das associações agrícolas, do turismo, da construção civil, das pescas…

Mas há outros setores que devem alertar o Governo. Os representantes da economia social, não podem continuar a assistir, silenciosamente, ao endurecimento das medidas que dificultarão ainda mais a prestação de cuidados. Quem irá trabalhar nas creches, nas escolas, nos lares, nos centros de dia, no apoio domiciliário, hospitais? A questão da imigração é um terreno que proporciona grandes vantagens à extrema direita, sobretudo quando apresentada como um problema. O modo de falar sobre a imigração tem um efeito sobre o medo e a hostilidade que alastram na sociedade. O ruido sobre a extrema direita favorecera-a e vai continuar a potenciá-la de não agirmos com inteligência.

A estratégia do Governo de incorporar o discurso populista, no que toca à imigração, traduzir-se-á numa vitória da direita radical que prosseguirá a sua cavalgada até à “vitória final”. Os imigrantes não são, como nos querem vender, um perigo. O Governo não deve sucumbir e acomodar-se ao discurso securitário e anti-imigração de direita radical e populista. O não continuará a ser não? Os sinais são preocupantes! Temos em mãos uma bomba demográfica, não nascem bebés. Quando temos uma enorme necessidade de mão de obra, só os imigrantes qualificados é que serão necessários?

Poder-se-á concluir que o problema não são os imigrantes, mas, invariavelmente, os pobres, independentemente da geografia em que nasçam ou do sobrenome de uma criança que enche a boca de gente vil?

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