Reflexões sobre as eleições de 18 de Maio

Então, o que é que levou tantos eleitores a votar na extrema-direita? Terá sido mesmo um voto de protesto contra os vícios do rotativismo bipartidário e de “o estado a que isto chegou” na Saúde e na Habitação, p. ex.?...Ou, como sugerem algumas pessoas,  será antes o levantar da cabeça dos salazaristas e reacionários escondidos no armário após o 25 de Abril?...

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  • 12:15 | Segunda-feira, 26 de Maio de 2025
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“Ainda não é o fim

nem o princípio do mundo.


Calma.

É apenas um pouco tarde.”

Luís António Pina, 1969.

 

 

ESTA GENTE

 

Esta gente cujo rosto

Às vezes luminoso

E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos

Ora me lembra reis

Faz renascer o meu gosto

De luta e de combate

Contra o abutre e a cobra

O porco e o milhafre

 

Pois a gente que tem

o rosto desenhado

Por paciência e fome

É a gente em quem

um país ocupado

Escreve o seu nome

 

E em frente desta gente

ignorada e pisada

Como a pedra do chão

E mais do que a pedra

Humilhada e calcada

Meu canto se renova

E recomeço a busca

De um país liberto

De uma vida limpa

E de um tempo justo.

 

–  Sophia de Mello Breyner Andresen (1967)

 

O PSD venceu as eleições, mas não com a maioria absoluta que ambicionou. Montenegro tanto pediu condições de estabilidade para governar sozinho, mas parece que nem mesmo toda a gente de direita compreendeu a história, mal contada a saca-rolhas e aos soluços, das avenças de grandes grupos económicos à empresa familiar Spinumviva, com sede na sala de jantar do Primeiro-Ministro, onde, certamente, para não ser acusado de violar a exclusividade de funções, não terá deixado a agenda com os contactos privilegiados.

Muitos eleitores de direita e do centro, pelos vistos, não querem estabilidade; pelo contrário, querem acabar com 50 anos de rotativismo entre PSD e PS e jogaram no escuro e no caos. O que será a “IV República” que o beato Ventura diz que proclamará recusando, desta vez, “ouvir Deus”?… Certamente não votaram para acabar com a corrupção que o Chega diz querer combater, porque então não se compreenderia que votassem num partido que em 50 deputados tinha 15 com problemas com a Justiça e as Finanças, conforme denúncia da revista Sábado: roubos de malas, de caixas de esmolas, de casas, pedofilia e prostituição de menores, violência doméstica, agressões a mulheres, a árbitros e até a colegas de partido, ofensas à honra, incitamento ao ódio, burla, falsas declarações em tribunal, dívidas ao fisco, destruição de carros e de correspondência alheia.  E, segundo a CNN, 23 dos recém-eleitos deputados “já se cruzaram com a Justiça”. E outro, Ricardo Reis, um jovem assessor parlamentar, eleito por Setúbal, comentou assim a morte de Odair Moniz, baleado por um polícia que foi acusado de homicídio pelo Ministério Público: “Menos um criminoso… menos um eleitor do Bloco”.

Então, o que é que levou tantos eleitores a votar na extrema-direita? Terá sido mesmo um voto de protesto contra os vícios do rotativismo bipartidário e de “o estado a que isto chegou” na Saúde e na Habitação, p. ex.?…Ou, como sugerem algumas pessoas,  será antes o levantar da cabeça dos salazaristas e reacionários escondidos no armário após o 25 de Abril?…

Não acredito que a maioria dos eleitores do Chega seja (neo)fascista como alguns dos seus líderes. Reaccionária, sim, sem dúvida, mas de uma forma mais instintiva do que reflectida, fruto da ignorância e dos preconceitos (racismo, xenofobia, homofobia, machismo e outros), o húmus do fascismo, que meio século de democracia não conseguiu erradicar da sociedade portuguesa e que o Chega manipula com mentiras e desinformação.

E aqui temos de atribuir responsabilidades aos partidos que se foram alternando no governo do país. Ainda recentemente vimos o PSD de Montenegro e Moedas a contribuir para o aumento da xenofobia e do racismo com a forma indigna como trataram os imigrantes que ajudam a nossa economia e a sustentabilidade da Segurança Social, associando imigração e insegurança, à revelia dos dados da PSP e da PJ,  numa cedência vergonhosa à extrema-direita. E até Pedro Nuno Santos foi atrás do andor ao apoiar o fim das “manifestações de interesse”, que só veio beneficiar as máfias que se aproveitam da falha do Estado em não regularizar atempadamente milhares de imigrantes que são necessários a todos os ramos da Economia. Pela “via verde” criada pelo governo ainda não entrou nenhum imigrante!, admitiu a AIMA há poucos dias.

Agora, tudo se precipita: Hugo Soares e Leitão Amaro já dizem que o “não é não” de Montenegro é só para a entrada do Chega no governo, mas que terão de negociar. O “não é não” deve valer tanto como o “nunca é nunca”  que Ventura soltou em Março, numa entrevista em que acusou Montenegro de falta de ética e que por isso nunca se aliaria à AD. Marques Mendes apela a um entendimento entre PSD e PS, como única forma de garantir estabilidade, mas também diz que “o entendimento com o Chega é incontornável”.

No PS, já são muitos a pedir entendimentos com a AD: Assis, Seguro, José Luís Carneiro, Santos Silva (“…mesmo que o PS entregue a liderança da oposição ao Chega…) , Correia de Campos (“Se já era muito o que os unia, a partir do dia 18 passa a ser muito mais o que os não separa”!).  Pedro Nuno, inseguro e isolado no terreno minado por Costa, deixou o centrista PS à mercê da ala mais direitista. De nada serviu o “voto útil” que tirou votos à esquerda e não impediu que o PS acabasse ultrapassado pela AD e pelo Chega.

A esquerda também foi derrotada. O PCP perdeu o seu deputado mais bem preparado,  António Filipe, mas, com mensagens mais simples e generalistas,  conseguiu  resistir melhor do que o  BE  que ficou reduzido a Mariana Mortágua.

Alguns amigos confessaram-me que desta vez não votaram no Bloco pensando que o “voto útil” no PS poderia impedir a subida tão acentuada do Chega, augurada nas sondagens. Houve transferência de votos do BE (e do PS) para o Livre, que defendeu uma nova “Geringonça”, apesar de Rui Tavares apoiar o rearmamento da Europa, ao lado da direita e do “extremo- centro”.

Mas a campanha do BE também não ajudou: o foco do BE nas suas propostas para o trabalho por turnos, protegendo um milhão de trabalhadores, não sensibilizou a maioria; o “slogan” “taxar os ricos” carecia de uma explicação técnica que, tendo sido dada, não chegou a todo o eleitorado; num país onde quem tem carro e casa própria já se considera rico, seria melhor qualquer coisa como “Taxar os bilionários para subir pensões e salários”. Erros de “comunicação e imagem” que não explicam a dimensão da derrota. “O BE foi o partido mais prejudicado pelos votos válidos não convertidos em mandatos”: “75% dos votos no BE (mais de meio milhão) não elegeram deputados”. (Público, 21.05.25).

Mas o Bloco continua a ser a única força de esquerda representada na Assembleia Municipal de Viseu, onde o Chega tem uma eleita que se tem distinguido pelas ausências (10 em 19 sessões, sem se fazer substituir, e sem apresentar uma única moção ou recomendação.  Há que dar mais visibilidade ao óptimo trabalho da eleita do BE em prol de Viseu e da região.

A boa notícia é que 85% dos eleitores e quase 80% dos votantes não votou no Chega. Mas, o facto de a direita junta ter os ⅔ de deputados necessários para a revisão da Constituição de Abril (como o IL e o CH já ameaçaram), obriga a esquerda a unir-se entre si e com todos os democratas que defendem o Estado Social nela garantido: o Serviço Nacional de Saúde universal e tendencialmente gratuito, a Escola Pública, a Segurança Social (que a direita quer privatizar), a Habitação, as empresas estratégicas do Estado, os direitos humanos (incluindo os das mulheres e de todas as  minorias, étnicas, nacionais, religiosas e de género), o direito à greve e os princípios fundamentais da Democracia, como a independência da Justiça e o pluralismo e independência dos órgãos de comunicação social. E a Paz! Sem abdicar do Socialismo, o  único sistema alternativo ao capitalismo, selvagem por natureza e criador de desigualdades, fascismos, guerras e colapso ambiental.

 

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