O dinheiro vivo

Este senhor Escária, o retrato perfeitinho do chico-esperto, fez uma pulhice ao PM, abusando da sua confiança e esquecendo-se do dever de lealdade. Foi um leviano, e, para fugir à declaração do rendimento dos 75.800, terá engendrado um expediente, guardando-o no coração do executivo, supondo-se, certamente pelo seu estatuto, intocável e acima da lei. Enganou-se.

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  • 16:16 | Segunda-feira, 20 de Novembro de 2023
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Já são três os erros que o Ministério Público comete, e reconhece existirem, no processo de indiciação da operação “Influencer”.

O primeiro foi a confusão na transcrição de uma escuta numa conversa entre Lacerda Machado e Afonso Salema, trocando o nome de António Costa pelo de António Costa e Silva, ministro da Economia.

O segundo foi o engano no número da portaria que Galamba é suspeito de ter aprovado com o contributo dos advogados da Start Campus.


O terceiro tem a ver com uma suposta reunião, na sede do PS, entre Lacerda Machado, Vítor Escária e o ex-CEO da Start Campus, encontro que nunca aconteceu, mas teve lugar em S. Bento.

Tudo isto, sem esquecer que a Procuradoria Geral da República não informou o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que, por acaso, na semana anterior tinha denunciado a “corrupção instalada” em Portugal e criticado o poder político, do inquérito a António Costa, que só o soube no dia da demissão. Uma pequena “maldade”.

Este somatório, num só processo, é mau de mais para ser verdade. Estes lapsos são chuva no nabal para quem quer, à viva força, descredibilizar a justiça, atingindo, no fim da linha, a qualidade da democracia, ferida num dos seus pilares.

Face a casos anteriores, com um triste fim, deviam os procuradores ter-se munido de todas as cautelas, antes de se fazerem à estrada, com um ímpeto tão demolidor. O melindre do que estava em causa devia merecer por parte dos investigadores outros cuidados e rigores, sabendo que estavam a pisar terreno sensível, capaz de com um simples abanão desencadear uma hecatombe de consequências políticas terríveis. Impunha-se robustez nos indícios, e que estes, quando presentes à avaliação do juiz de instrução, mostrassem ser à prova de bala, não deixando ao magistrado outro caminho que não fosse a aplicação das medidas de coacção presentes no pedido de promoção do MP.

Diga-se, a propósito, que a opinião instantânea, ao tempo, tanto imperou nos que se apressaram a tocar o sino, abanando freneticamente o badalo e golfando prazeres, no dia das detenções, como nos que, conhecidas as medidas de coacção, seguiram em procissão a inocentar os arguidos, a justificar politicamente os investimentos sob suspeita, e a exigir do STJ celeridade na decisão, condicionando os seus tempos.

Acalmemos todos o passo, e estejamos atentos e sejamos sérios, pois a verdade limpa é que o juiz de instrução, apesar do colapso das medidas de coacção privativas da liberdade, mesmo assim confirmou a suspeita da prática de crimes muito feios, a não ser que, rendidos à força e à sedução dos bem colocados, achemos que o tráfico de influências seja a forma normal e natural de fazer os negócios do Estado.

À justiça o que é da justiça, à política o que é da política. Nenhuma destas trapalhadas jurídicas prejudica um facto importante, que me parece andar por aí meio esquecido, mas que é saudável e higiénico ser lembrado. Os 75.800 €, em dinheiro vivo, uma pequena fortuna, caçados no gabinete do chefe de gabinete de António Costa, que não saberia deles, nem era suposto saber. Mas, experiente, não podia desconhecer as pessoas com quem se metia, e devia sujeitá-las a rigoroso escrutínio, antes do recrutamento.

Provou-se, ao longo da legislatura interrompida a meio, que foi pouco ajuizado em algumas escolhas, e não foi por falta de aviso. O povo que sucumbe perante os impostos, que tem uma vida amargurada, não havendo meio de deixar de ser pobre ou remediado, não pode senão indignar-se, por saber que há um alto responsável da Administração Pública que se preparava para fugir aos impostos, só agora se dispondo a regularizar a situação perante a Autoridade Tributária, porque foi apanhado em flagrante.

E é esse mesmo povo que se pergunta: sendo esse dinheiro escondido, proveniente de pagamentos de serviços lícitos, porque é que o sr. Escária aceitou que fosse pago em notas, e não exigiu que fosse depositado na sua conta bancária? Sejamos adultos, todos nós sabemos que, quando os pagamentos avultados são feitos em notas, é porque não se quer deixar rasto sobre a sua origem, nem se quer declarar o valor ao fisco. É do senso comum.

E isso é absolutamente imperdoável, altamente condenável na figura do braço direito do PM, atingido, naturalmente, pelos estilhaços do esquema que não lembraria ao mais irresponsável dos seus colaboradores. E pedem-nos sacrifícios… Este senhor Escária, o retrato perfeitinho do chico-esperto, fez uma pulhice ao PM, abusando da sua confiança e esquecendo-se do dever de lealdade. Foi um leviano, e, para fugir à declaração do rendimento dos 75.800, terá engendrado um expediente, guardando-o no coração do executivo, supondo-se, certamente pelo seu estatuto, intocável e acima da lei. Enganou-se. A um chefe de gabinete exige-se mais do que se pede a um vulgar cidadão. O exemplo. Tudo o que este senhor, pelo que fez, não é, nem parece saber o que isso é. Com a distracção do dinheiro vivo, esquecido por entre livros e vinho, a 20 metros do gabinete do PM, o sr. Vítor Escária, que nunca devia ter estado onde esteve, colocou o problema da pilha de notas na esfera política, e mostrou que não é ser flor que se cheire. Espero bem que o MP se interesse pelo apuramento da proveniência do dinheiro e por tudo o que envolve o seu fluxo, desde Angola até Lisboa.

Politicamente, e se mais não houvesse, o PM, com ou sem parágrafo da PGR, não tinha como sair ileso desta salgalhada, e o único caminho possível era formalizar o pedido de demissão, como, de resto, aconteceria com outro PM de um qualquer país civilizado. Porém, é bom não esquecer que, com ou sem indícios fortes, corre contra si um processo no STJ, e um PM não pode, em circunstância alguma, estar sob suspeita, com a agravante de se tratar de um processo-crime. É um ónus exigido pela dignidade do cargo e pelo respeito devido aos eleitores. E, queiramos ou não, enquanto não houver arquivamento do processo em causa, António Costa está sob suspeição, com o seu nome várias vezes referido entre os factos considerados como fortes indícios de crime. Costa, ao ter essa percepção, demitiu-se. E bem.

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