Muros de silêncio

Trancados a sete chaves continuam muitos dos seus segredos, mas, nem por isso as suas intenções. O “combate a todas as formas de preconceito e de opressão”, o “aperfeiçoamento do indivíduo” e o “melhoramento do mundo” são alguns desses ativos.

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  • 18:47 | Domingo, 07 de Outubro de 2018
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De frente para o Mondego, Coimbra assistiu ao passar dos tempos. Altiva, conhece melhor do que ninguém o segredo. É sobre este local carregado de histórias, sobre estas vidas, que falamos agora.

A data exata há muito que se perdeu no labirinto da memória. Apesar desse capricho da mente, ainda é possível situar cronologicamente a ação. Estávamos no arranque de 2004. Amadeu Carvalho Homem, 59 anos, estacionou o carro nas imediações da Estação Nova. Percorreu umas dezenas de metros e entrou num conhecido hotel da cidade. Sentou-se, pacientemente, e esperou pelo que aí vinha.

Cinco minutos depois a linha de pensamento do historiador e professor catedrático da Universidade de Coimbra foi interrompida. O seu contacto de ligação tinha chegado. As apresentações foram breves. Carvalho Homem seguiu-o, entrou numa viatura, baixou os olhos e concentrou-se em não prestar atenção às ruas que iam atravessando.


À primeira vista, o pequeno cubículo para onde foi conduzido parecia não ter segredos: as paredes negras realçavam somente a sobriedade da “cadeira e da mesa de pau” que o aguardavam – um verdadeiro “ambiente estudantil”. Já as fórmulas presentes nos “dois ou três pequenos livros de capa dura” sobre a mesa desmentiam essa simplicidade: eram questões de natureza filosófica de grande ângulo – o “mote para a conversa que se seguiria”.

Chegara a hora da verdade. Despojado de todos os seus pertences, vendado, sem a tradicional corda à volta do pescoço e com a camisa desapertada ao primeiro botão, foi levado. Curvado, numa cadeira não almofadada, respondeu com verdade a todas as questões que lhe foram colocadas. Em poucos minutos conheceu as suas obrigações, cumpriu o ritual previsto e prestou juramento.

Amadeu Carvalho Homem, o novo “irmão”, pertencia agora a uma das organizações secretas mais antigas do país. Infelizmente, não havia outra forma de o contar.

Nos últimos anos habituámo-nos a ler relatos como este, quase sempre sem rosto, na imprensa diária. O mundo secreto da “Augusta Ordem” nunca foi tão escrutinado como hoje. Contudo, a grande interrogação permanece: está a maçonaria a tentar tomar conta do país? Há quase três séculos que eles estão por aí. Ainda hoje, continuam a desfilar nas sombras. Qual o propósito?

Trancados a sete chaves continuam muitos dos seus segredos, mas, nem por isso as suas intenções. O “combate a todas as formas de preconceito e de opressão”, o “aperfeiçoamento do indivíduo” e o “melhoramento do mundo” são alguns desses ativos. E, não é por acaso que, algumas destas bandeiras lhes granjearam ao longo da História muitos inimigos, gente que, garante Amadeu Carvalho, “não está propriamente aí para nos oferecer flores”.

Por outro lado, como se constroem impérios do nada? Há quem consiga jurar a pés juntos que, para lá dos códigos secretos, dos ideais, dos rituais, há muito que esta organização foi tomada por uma teia de interesses que percorre todos os quadrantes da sociedade. Da simples influência política à complexa lógica do mundo dos negócios. Será?

Começava o ano de 2012. As ligações entre Miguel Relvas – o maçon n.º 2400 do Grande Oriente Lusitano (GOL), Jorge Silva Carvalho, ex-diretor do SIED (Serviço de Informações Estratégicas de Defesa), e Nuno Vasconcelos, “irmãos” na “Ongoing” e na Grande Loja Legal de Portugal (GLLP), foram uma valente pedrada no charco. O episódio pertence a outra vida, mas ficou gravado na memória dos portugueses.

Neste ponto, talvez uma chuva de críticas possa servir de metáfora ao que se tem passado no país deste então. Falar, escrever abertamente, apenas sobre o ideário maçónico tornou-se um exercício arriscado. Aqui, o professor desdramatiza. “Estas coisas têm que ser assumidas com a dignidade da verdade que nós próprios defendemos.

Nenhuma organização deve ser medida pelos setores obscuros que possa ter, a menos que estes se tornem maioritários. Na maçonaria portuguesa não é esse, definitivamente, o caso”. As colunas abatidas da loja Mozart 49 – uma célula adormecida da Grande Loja Regular, foram reerguidas e postas ao serviço de um projeto de ambição pessoal que beneficiava apenas um número restrito de pessoas ligadas a vários sectores do poder político e económico. Amadeu Homem sabe que não pode reescrever a História. A resposta está dada.

Mas, olhemos de novo para lá dos muros. “À porta do templo bateu um profano que deseja ser admitido nos mistérios e privilégios da antiga e nobre Ordem Maçónica”. A frase, ouvida pela primeira vez em Coimbra em 1863, aguça-lhe a memória. Entre esse momento e o terceiro – e último, grau simbólico – Amadeu Carvalho Homem levou cerca de quatro anos. Nesse longo trajeto de aprendizagem, reflexão e autoconhecimento cumpriu todos os passos das “antigas corporações de artes e ofícios”: aprendiz, companheiro e mestre.

São conhecidas as diferenças entre aqueles que defendem o abandono da “clandestinidade” e toda uma corrente maioritária que promove a perpetuação do segredo. Será este, como pintam os jornais, um confronto entre a iniciativa e a inércia ou um “espaço de cavalheirismo e de respeito mútuo no qual se debatem as diferenças”? Seja qual for o ângulo de abordagem, esta última não deixa de ser uma posição “clarividente” nestes tempos em que “o bem democrático, o bem da tolerância, o bem da solidariedade – todos bens escassos – podem ter os dias contados”. Um dia se verá.

O CERCO AO VALE DE COIMBRA

In illo tempore (em tempos idos), Coimbra, cidade onde encontramos a mais antiga universidade portuguesa – a Universidade de Coimbra (UC) – foi uma das cinco capitais de Portugal. Nunca nenhum rei chegou a assinar qualquer documento que oficializasse Lisboa como sua legítima herdeira. Mas, a que vem tudo isto?

Cerca de cento e cinquenta anos depois da fundação da primeira loja na cidade, a loja “Liberdade”, o projeto que queria transformar Coimbra num pólo de desenvolvimento maçónico continua na gaveta. E, há razões para isso, explica Amadeu Carvalho Homem. “Este país macrocéfalo continua inclinado para os dois grandes centros: Lisboa em primeiro lugar – antes de tudo – e depois o Porto. Segue-se um litoral muito denso “. Paradoxalmente, o “Vale de Coimbra”, o conjunto de lojas pertencentes a este território, é considerado um “amplo centro difusor do ideal maçónico”, tudo graças aos valores que a universidade desta cidade incute aos seus alunos.

A Universidade de Coimbra difunde valores maçónicos? Não acredita? Esta pergunta é traiçoeira e já muitos aqui partiram pernas. Sim, não leu mal. Antes de qualquer julgamento precipitado, repare no substantivo. Os “valores” não estão ali por acaso. Na verdade, os nobres valores da maçonaria – a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade – são, ao mesmo tempo, os grandes ideais do Homem e, não causa urticária que os mesmos pautem o ensino em Coimbra. Mas, vamos por partes. Nas obediências maçónicas estas premissas não são apenas palavras, são “devidamente aprofundadas”. A Liberdade com ordem, a Igualdade com respeito e a Fraternidade com justiça há séculos que iluminam as ruas de Coimbra. Que o diga o Bispo‑Conde de Coimbra que, em 1765, viu o seu livro “Sistema Jacobea” queimado no Terreiro do Paço. Ou José Anastácio da Cunha, lente de Coimbra e escritor, que foi condenado pelo Santo Ofício (Inquisição) a abjurar dos seus “heréticos erros” em 1778. Ou, ainda, os nove estudantes de Coimbra, todos maçons, que em 1781 foram sujeitos a atos de penitência públicos.

Contudo, aqui tratamos de jornalismo, não de História. É certo que muitas linhas podiam ser escritas sobre a maçonaria do Vale de Coimbra. Tudo coisas interessantes para o leitor. Mas, esse “tudo” não seria apenas uma forma de expressar num só vocábulo o “lado B” desta organização. A enumeração, por si só, da lista de nomes dos cerca de 200 “irmãos”, das lojas do Grande Oriente Lusitano em Coimbra, tornada pública pelo grupo de hackers LulzSec Portugal, a divulgação dos seus lugares secretos, dos rituais, dos “segredos de Polichinelo”, lançaria alguma luz sobre os seus propósitos. Temos grandes dúvidas.

HOJE E AMANHÃ

“A ave de rapina não canta”, assim diz o provérbio popular. E é precisamente por isso que a verdade factual desmente muitas vezes a verdade jornalística. Esta última, é sabido, alimenta-se vezes demais do preconceito. É certo que, de Valença a Vila Real de Santo António, há gente com vontade de tomar o poder e dominar o país. Mas será esse o propósito do coletivo? Acreditamos que não. Hoje, olhar para a maçonaria é como assistir a uma peça de teatro com o pano corrido: não se vê grande coisa, mas ouve-se tudo. A irmandade quase secreta tornou-se apenas discreta. E, nesta diferença cabe o mundo.

“… – Mas, aqui entre nós que ninguém nos ouve: essa Maçonaria Internacional da Alta Finança existe de facto ou é lenda…?” Quase um século depois, a questão levantada pela Gazeta de Coimbra em julho de 1930 foi finalmente respondida.

Sempre envolta pela neblina, ao contrário do que se acredita, “a maçonaria não caiu em desgraça”, o que não deixa de ser notícia. O Grande Oriente Lusitano (GOL) tem no país mais de 100 lojas e a Grande Loja Legal de Portugal (GLLP), outras tantas. A estas obediências juntam-se ainda a Grande Loja Simbólica e a Grande Loja Feminina de Portugal, ambas presentes na cidade de Coimbra. O número é redondo. No total serão cerca de 5500 os “pedreiros‑livres” no país, número que tem vindo a crescer sustentadamente ao longo da última década.

As contas estão feitas. Contudo, há uma realidade que escapa à vista quando a análise é apenas aritmética: a conquista do interior. Hoje, curiosamente, “está em curso uma expansão para o interior mais profundo” que permite antever a breve trecho “uma cobertura integral do país”. É obra.

A VERDADE DA MENTIRA

A conversa leva-nos de volta ao ano de 2004. No templo – local onde decorre a reunião – os irmãos estão de fato escuro, camisa branca lisa e gravata. A palavra “solene” está escrita com todas as letras no rosto dos presentes. As luvas brancas, os aventais e um ou outro colar provam isso mesmo.

A voz do venerável – o líder da loja (a Luz) – ouve-se uma vez mais. “Meus irmãos, vai circular o tronco da viúva”. Lentamente, quando a vez chega, cada membro da irmandade tira a luva da mão direita e deposita dinheiro num pequeno saco de pano preto posto a circular pelo “mestre hospitaleiro”. É daqui que, anonimamente, sairá a ajuda necessária para acudir a situações de carência. Não é preciso ter uma imaginação fértil para saber que deste saco já saiu muito dinheiro para beneficência e outro tanto para a conclusão de licenciaturas na cidade. Nunca saberemos quanto. Nunca saberemos quantas.

Quando toca a dinheiro, as conclusões costumam ser mais ou menos as mesmas. A ideia de que pertencer à maçonaria é meio caminho andado para a riqueza é tão natural como errada. Mesmo assim, a pergunta sai disparada em jeito de provocação. Os olhos de Amadeu Carvalho sorriem, como que a agradecer a lembrança.

“Quem acreditar que a maçonaria serve para arranjar emprego para o filho, para a filha, para a sobrinha, está enganado. Não vai receber nada. E olhe, até vão pagar. Portanto, eles que façam contas à vida”. O tiro atinge-me em cheio. Faz isso alguma diferença? A resposta só pode ser sim.

Já é tarde. Na esplanada do Parque Verde do Mondego o fresco da noite começa a fazer-se sentir. O dia esteve perfeito, mas já não é a melhor hora para conversar. O professor agarra distraidamente nos apontamentos abandonados na mesa e, enquanto termino o quarto café, a agilidade de décadas leva-lhe a caneta à mão. Sustenho a respiração. Risco aqui, anotação ali, dois ou três minutos que demoram horas.

Levanta-se, estende-me a mão e, sem cerimónia, parte em direção ao parque de estacionamento. Fico sozinho com os meus pensamentos. Na mesa o bloco continua aberto. Leio com atenção.

Olho uma última vez para Coimbra. A cidade parece querer afogar-se no rio. A seus pés, um monte de palavras riscadas desce em direção ao fundo. A verdade, essa, salvou-se.

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