É importante decretar o estado de emergência do brincar ao ar livre

... cidades mais amigas das crianças, isto é, cidades que incluem as crianças e adotam políticas para que estas possam brincar mais, e de forma segura, nas ruas.

  • 18:13 | Quinta-feira, 20 de Agosto de 2020
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O problema não é novo, mas a pandemia da Covid-19 confinou ainda mais as brincadeiras ao ar livre. Se brincar é algo tão fundamental para o desenvolvimento das crianças, quais as consequências de não o fazer? E como se pode contrariar isso quer na rua, quer na escola? As reflexões são de Carlos Neto, Frederico Lopes, Jo Claeys e Sara Martins, os quatro convidados da segunda sessão das Conversas Online organizadas pela ONG Ajuda em Ação.

 As ruas devem ser espaços para as crianças brincarem

Seja por falta de tempo dos pais, pelo atual modelo de ensino nas escolas ou pela sociedade em si, parece que o brincar ao ar livre ficou esquecido. O problema não é de agora, mas ganhou uma nova intensidade com o confinamento imposto pela Covid-19, algo que Mário Rui, diretor de programas da Ajuda em Ação em Portugal, revelou como uma grande preocupação da ONG no discurso de abertura da conversa moderada pela jornalista Isabel Moiçó. Preocupação da qual o investigador Carlos Neto também partilha ao afirmar logo na sua primeira intervenção que “é importante decretar o estado de emergência do brincar ao ar livre” e ao reconhecer o brincar como essencial para os “seres humanos se estruturarem de um ponto de vista motor, social, cognitivo e emocional”. Além de que o não brincar tem implicações na saúde: “75% a 80% das crianças que acompanho tiveram um grande agravamento da obesidade pré-existente”, avançou em seguida a pediatra Sara Martins.


Apesar da dura realidade, existem profissões como a de Frederico Lopes que têm como missão recuperar o brincar ao ar livre. Como brinconauta na Associação 123 Macaquinho do Xinês e membro do consórcio Brincapé, Frederico afirmou que uma das formas de o fazer, sobretudo num contexto urbano, é através do conceito de “cidades mais amigas das crianças”, isto é, cidades que incluem as crianças e adotam políticas para que estas possam brincar mais, e de forma segura, nas ruas. Portugal “ainda está longe de ter cidades amigas das crianças, mas está próximo de começar a ter vizinhanças amigas das crianças”, disse Frederico Lopes, dando o exemplo de medidas que foram tomadas em cidades como Lisboa, como o aumento do espaço público e a redução da circulação automóvel, e que embora não tenham sido motivadas pelo brincar, ajudaram-no. “Enquanto adultos é preciso desformatar a ideia de que as crianças só brincam no espaço de jogo, de recreio ou no parque infantil”, reforçou.

Uma ideia com a qual o formador e educador não formal Jo Claeys se identificou, ao partilhar a sua experiência de quem vive e trabalha numa zona rural. Mesmo morando na vila da Marmeleira, onde há maior liberdade para as crianças brincarem ao ar livre, inconscientemente dá por si a dizer ao filho “atenção ao carro!” quando deveria era dizer à pessoa que conduz “atenção à criança!”.

Estará na altura de repensar o atual modelo de ensino das escolas?

O público da segunda sessão das Conversas Online da Ajuda em Ação já comentava com interesse as reflexões dos quatro convidados, mas foi no momento em que a moderadora Isabel Moiçó introduziu o tópico do regresso às aulas em tempos de Covid-19 que a participação aumentou consideravelmente. Especialmente quando o investigador e professor da Faculdade de Motricidade Humana Carlos Neto referiu que esta é a altura certa para se repensar o atual modelo de ensino das escolas, sobretudo da creche ao 2º ciclo, para que “as crianças deixem de ser pequenos prisioneiros dentro da sala de aula, para poderem ser pequenos pesquisadores ao ar livre”. O novo modelo de que Carlos Neto falou durante a sua reflexão implica que a escola vá além da sala de aula, recorrendo mais ao espaço exterior, até porque isso potencia a atividade e a aprendizagem. Um espaço exterior que tem obrigatoriamente de mudar para se tornar “um espaço interessante”.

A pediatra Sara Martins concordou com a abordagem de se levar as crianças mais para o espaço exterior neste regresso às aulas e destacou a importância de se voltar à escola. A convidada defendeu que “não é de todo exequível impedir as crianças de terem contacto”, alertando que seguir por esse caminho “teria demasiadas consequências a nível psicológico e do desenvolvimento” e que o uso de máscara em crianças pequenas pode ter efeitos emocionais indesejados.

E continuar a confinar as crianças também não é a melhor solução, porque durante este período “apresentaram mais quadros de ansiedade”, lembrou Frederico Lopes. Para já, é mais sensato tomar precauções como “não mandar as crianças para escola quando estão doentes” e ter a perceção de que “as crianças representam 1% dos casos mundiais e a grande maioria são assintomáticas ou são muito pouco sintomáticas”, ressalvou Sara Martins.

“O risco é essencial ao brincar”, diz a pediatra Sara Martins

Ao longo da conversa ficou bastante claro que todos os convidados concordavam num mesmo ponto: as crianças brincam cada vez menos e, sobretudo, brincam cada vez menos ao ar livre. Isto também está a acontecer porque, como disse Jo Claeys na sua última intervenção, “como adultos, muitas vezes, temos medo de deixar as crianças brincarem, com receio que se magoem. E acabamos por cortar as asas às crianças”.

Talvez porque ainda se confunde a ideia de perigo com a de risco. “Perigo é diferente de risco. O risco é essencial ao brincar e à aprendizagem porque dá às crianças a capacidade de adaptação que elas vão aproveitar ao longo da vida toda”, fez questão de desmistificar a pediatra Sara Martins. “Uma criança saudável é aquela que tem os joelhos esfolados. Uma criança saudável é aquela que se confronta com o risco. Só quem se confronta com o risco é que tem segurança”, lembrou ainda Carlos Neto.

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