Viseu tem mais ruas com nomes de clérigos e “santos” do que viseenses laicos e ilustres

Mas a maioria do PSD optou por mais dois santos na toponímia da Freguesia de Viseu, a somar às quase setenta artérias com nomes ligados à religião católica, entre as quais 31 com nomes de santos, 7 santas, 4 nossas senhoras, 2 papas, 2 bispos, 3 cónegos, 5 padres e 1 frade.

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  • 19:40 | Quarta-feira, 28 de Setembro de 2022
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Na última sessão da Assembleia de Freguesia de Viseu (AFV), no passado dia 12, foi posta à discussão as propostas de toponímia de dois arruamentos sem topónimo, um em Santiago e outro no Bairro de S. José.

A Junta de Freguesia de Viseu (JFV) não informou previamente os membros da AFV das suas propostas de nomes. Dos partidos da oposição, PS e BE, só a bloquista Catarina Vieira (CV) apresentou dois nomes de mulheres viseenses que ficaram na história da Arte e da Literatura em Portugal: Judith Teixeira (Viseu, 1880), elogiada por Aquilino Ribeiro e por António Manuel Couto Viana que a designou como “a única poetisa modernista” portuguesa; Francisca de Almeida Furtado (Viseu, 1827 – Porto, 1918), filha do viseense José Maria de Almeida Furtado, o “pintor Gata”, considerada a melhor retratista e miniaturista portuguesa do seu tempo, representada no Museu Nacional de Arte Antiga e no Museu Nacional de Soares dos Reis.

Qualquer uma destas ilustres artistas seriam dignas de figurar na toponímia viseense que, significativamente, apenas homenageia duas mulheres que viveram na cidade de Viseu: Augusta Cruz (1869-1901) cantora lírica com carreira internacional e Maria do Céu Mendes (1847-1933), uma das melhores pianistas do seu tempo.


Lembro que, em Abril de 2020, a bloquista Manuela Antunes apresentou na AFV uma recomendação para ser incluído na toponímia da cidade o nome de Beatriz Pinheiro de Lemos (1871-1922), professora, poetisa e prosadora, música e actriz amadora, fundadora e dirigente, com o seu marido, o poeta Carlos de Lemos, da revista literária Ave Azul. Em 29.06.2020 a JFV levou à AFV uma proposta para atribuição do nome “Rua Beatriz Pinheiro” não a uma avenida ou rua, como seria condigno, mas a um caminho por detrás do Bairro Maria do Céu Mendes, que só foi aprovada por unanimidade porque a oposição receou que, face a tal indignidade do conservadorismo retrógrado que continua a dominar a política viseense, poderia demorar a ter outra oportunidade de “toponimizar” a militante republicana e a activista em prol dos direitos das mulheres, incluindo o direito ao divórcio.

Agora, a JFV apresentou os nomes “Rua de São Bernardo” para o arruamento de Santiago, e “Rua de S. José”, para o arruamento do bairro de S. José, cujas casas que já se encontram devolutas e a aguardar demolição, pelo que deixará de ser bairro e passará então a precisar de nova toponímia. Uma boa oportunidade para homenagear aquelas artistas viseenses. Mas a maioria do PSD optou por mais dois santos na toponímia da Freguesia de Viseu, a somar às quase setenta artérias com nomes ligados à religião católica, entre as quais 31 com nomes de santos, 7 santas, 4 nossas senhoras, 2 papas, 2 bispos, 3 cónegos, 5 padres e 1 frade.

Diamantino Santos (DS), presidente da JFV, logo após a votação dirigiu-se a CV dizendo-lhe que os moradores de Santiago iriam gostar de saber que a eleita pelo BE tinha votado contra o nome que eles próprios escolheram. A bloquista manifestou de imediato a sua indignação, dado que DS não só não comunicou antecipadamente a sua proposta aos membros da AFV, como seria curial e democrático, como não os informou da realização de qualquer reunião com os moradores de Santiago, de forma a que também eles pudessem estar presentes. 

Talvez os moradores de Santiago aceitassem outra alternativa se confrontados com a verdade sobre São Bernardo. É que para além de reformador da Ordem de Cister e ter fundado mais de 500 mosteiros, o abade borgonhês Bernardo de Claraval filiou-se nos Templários, os monges-guerreiros e pregou, no sul de França, a pedido do papa, a Segunda Cruzada, prometendo a quem se alistasse “a absolvição dos pecados” e a “recepção da graça divina.” Na presença de Luís VII de França, pregou assim para a multidão: “amaldiçoado seja aquele que não manchar a sua espada de sangue!” Este fanatismo religioso incentivou vários massacres da população judaica em França e na Renânia. O consagrado escritor francês Amin Maalouf, na sua obra “As Cruzadas Vistas Pelos Árabes”, conta como a 15 de Julho de 1099 os cruzados francos entram em Jerusalém “degolando homens, mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as mesquitas.” Os cruzados cristãos foram tão terroristas como são hoje os jihadistas do Daesh/ISIS e al-Qaeda, como descreveu o cronista franco Raul de Caen: “Em Maara, os nossos coziam pagãos adultos nos caldeirões, enfiavam as crianças em espetos e devoravam-nas assadas.”

Além de promotor desta guerra de invasão e saque de uma civilização muito mais tolerante e avançada  na cultura e na ciência como era a dos povos árabes (a segunda cruzada terminou com a derrota dos reis de França e da Alemanha), Bernardo, em 1145, foi organizar a cruzada contra cátaros, albigenses e valdenses, nobres e camponeses da Provença, Languedoc, Roussillon, Catalunha, Renânia e Flandres, acusados de heréticos por defenderem a pureza da religiosidade cristã primitiva, contra os abusos da Igreja de Roma, apoiada pela nobreza de Itália, Suíça, França e Norte da Península Ibérica. Em 1233, o papa Gregório IX criou a Inquisição, a “solução final” para a “heresia”, que prendeu, torturou e matou milhares de homens e mulheres.

Já bastava a Viseu ter uma “Av. São Josemaria Escrivá”, o fundador da Opus Dei, uma poderosa seita semi-secreta, com uma rígida estratificação hierárquica de acordo com habilitações académicas e origens sociais dos membros (“numerários”, “oblatos” e “supranumerários”), considerada “uma igreja dentro da Igreja”, que o papa João Paulo II  elevou a “prelatura pessoal” (os membros não obedecem aos bispos, só ao papa e ao prelado).

O papa Francisco, há pouco mais de um mês, retirou-lhe poder, não permitindo que o seu líder seja considerado bispo e aumentando o seu controlo. A “Obra de Deus” esteve envolvida nos escândalos financeiros e de corrupção, “Rumasa” e “Matesa”, em Espanha, onde nasceu e apoiou o regime de Franco com oito assumidos membros como ministros da ditadura espanhola. Na América Latina apoiou activamente ditadores assassinos como Pinochet e Fujimori. Numa missiva a um membro da Opus Dei, citada por Luís Miguel Rocha no seu livro “Bala Santa”, dedicado a João Paulo II, Escrivá escreveu: “Hitler não deve ter sido tão mau como dizem. Não pode ter matado seis milhões. Não deve ter passado dos quatro milhões.” Este canonizado por João Paulo II, no seu livro “Caminho”, deixou esta “Máxima 311”: “A guerra tem uma finalidade sobrenatural… mas temos de amá-la, como o religioso deve amar suas disciplinas”. “Disciplinas” é o ritual aconselhado aos membros da Opus Dei de martirizar as nádegas com chicotes ou as coxas com cilícios. Escrivá pregava a mortificação: “Amada seja a dor. Santificada seja a dor. Glorificada seja a dor” (Caminho). ”As mulheres não precisam de ser sábias, basta serem recatadas” – escreveu este “santo de pau carunchoso” cujo nome envergonha a toponímia da nossa cidade.

Até parece que Viseu não saiu da Idade Média, em que não havia distinção entre Igreja e Estado, ou da ditadura salazarista com uma omnipresente religião de Estado, em vez de se assumir como uma cidade moderna numa república democrática e laica com mais de cem anos.

 

 

 

 

 

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Publicado em Opinião