Vim à Lapa por curiosidade. Vim à Lapa por devoção. Vim à Lapa por Aquilino. Vim à Lapa mercar queijo, comprar pão…

Mais arriba, a entestar com o santuário, alinhavam as chafariqueiras; tomava-se ali toda a casta de bebidas, desde o café à limonada. Pelo meio, rondavam os moinas, que as melhores frangainhas serviam naquelas barracas. O palminho do rosto, a poeira, o calor da bursunda, ou o frio da noite ajudavam à veniaga e era chícara cheia, chícara vazia.

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  • 20:12 | Sexta-feira, 23 de Fevereiro de 2024
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Se há topos que se me presentificam constantes nesta tão efémera vida, um deles é a Lapa.
Por esse retorno, por essa porfiada revisitação, como os romeiros de há cem e duzentos anos, sic et vulgus, enseja-me adagiar voto e rifão:

Adeus, Siôra da Lapa,
Adeus, té o ano que vem;
Façais vós o que vos pido
E cá vos trarei meu bem.

Dava os primeiros passos na docência, asinho corria 74, fui colocado na secundária de Barrelas. Aos domingos à tarde, mais rópia de amigos, vínhamos à Lapa suciar, por desfastio. Chegávamos à taberna do Luís, frente ao Pelourinho, encomendávamos um borrego bem limpo de seus beduns, assado no forno a lenha, com batata tamanhinha das bandas do Viduínho, arroz seco, em espadela de barro negro, com carqueja do arredol, e lestos, esmoíamos trinta mocas à sueca, a tinto riodemoinhense inflamadas, com muitos massetes de permeio, cartas calcadas e bem batidas de punho, miradas certeiras à bisca seca, caneladas sob a mesa, arroubos de arrenúncia e… lá no termo da concentrada quão belicosa pugna, os perdidos, desconsolados mas sem tristeza, esportulavam das delgadas bolsas o estipêndio para o conduto. Era o singelo domingo dos laparotos, saídos da lura a espairecer…

Vim à Lapa por curiosidade. Vim à Lapa por devoção. Vim à Lapa por Aquilino. Vim à Lapa mercar queijo, comprar pão e venho à Lapa, sempre e de prazer bem ancho, a convite da autarquia sernancelhense e por mor da nossa comum aquilinofilia.


A Lapa de hoje é de uma fidalguia faustosa por analogia a esses tempos de quase olvido. E felizmente que assim é, por empenhamento destes autarcas, para prosperidade dos lapenses e para justa glória do seu Santuário.

Cento e quarenta e um anos separam termos de nascença de dois Homens à Lapa ligados. Uma légua velha as terras que os viram nascer, Gradiz e Carregal, e as terras onde passaram muitos dos seus anos, Fraga e Soutosa. Em comum, a sua ligação à Lapa, e mais entranhadamente ainda, a sua supina competência de grandes filólogos que foram. E esse tributo é-lhes devido, hoje e sempre, também aqui e agora, pelo grandioso contributo que deram à Lusíada língua.

Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, nascido em 1744, na povoação de Gradiz foi autor de notáveis obras, de entre as quais sobressaem Cronologia da Igreja de Portugal e a maior, Elucidário, cujo Iº tomo vê prelo em Lisboa em 1798, considerado o 1º dicionário da Língua Portuguesa. Foi este sábio frade nomeado, de 1794 a 1797, Director do Colégio da Lapa, ou Seminário da Lapa, que havia sido encerrado pela lei de 3 de Setº de 1759, com expulsão dos Jesuítas, por Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal. Segundo Viterbo, assim tendo permanecido por trinta e cinco anos de silêncio, desolação e miséria, em que jazeram as mal-afortunadas aulas deste colégio.

Estava então o Seminário ou Colégio situado na freguesia de Quintela da Lapa, ora integrada na comarca de Moimenta da Beira, concelho de Caria e Rua, sendo pertença dos Jesuítas do Colégio de Coimbra.

Frei Joaquim tem longa e profícua vida, falece em 1822 e encontrou sepultura a uma légua daqui, no Convento da Fraga, a meia distância entre a antiga porta do capítulo e a que dava serventia para a portaria do Convento.

A título de mera curiosidade, seja aqui referido que os belíssimos Claustros deste Convento, com o beneplácito do Estado Novo e seu mor corifeu (passe a tautologia), foram integralmente cedidos aos doutores Abel e João Lacerda, sendo hoje, a parte interior aberta do Museu de Arte do Caramulo. Se bem que preservados, são enxertia que não consorcia o granito deste planalto e do vale de Ferreira, com o xisto negro daquelas bandas.

Voltando ao nosso sábio Viterbo, designa ele no tomo II, pp. 358/359 do Elucidário, por lapêdo, terreno penhascoso ou cheio de pedras, com etimologia remontante a 1101.

Citamos: Chamaram pois lapêdo à grande cópia de pedras, assim como disseram arvoredo, moireredo, figueiredo, pelas árvores, amoreiras, figueiras, etc.

O bem elaborado Roteiro Turístico de Sernancelhe, assim refere a Lapa: (…) povoado anexo da freguesia de Quintela, situa-se a cerca de mil metros de altitude e cresceu por entre serras enfraguadas e rigorosos nevões invernais. Terra pequena, de construções de granito enegrecido pelos ventos do Marão, é na Lapa que nascem os rios Vouga e Paiva. A história desta localidade começa em 1493 com o aparecimento da imagem de Nossa Senhora debaixo de uma lapa. A lenda tomou proporções nacionais e, sem demoras, surgiram as primeiras construções naquele local. “Para abrigo da Imagem, e resguardo temporário dos fiéis, principalmente no tempo de maior afluência deles, construiu-se um oratório e levantaram-se algumas barracas simples”, escreve o Abade Vasco Moreira, no livro “Sernancelhe e Seu Alfoz”. (citámos).

Porém, é de todo essencial consultar a obra lavrada por Monsenhor Arnaldo Pinto Cardoso, “Santuário da Lapa – História e Tradição”, da Aletheia editores, aqui apresentada ao público em 2007, que viu prelo, também, por parceria e empenhamento da Autarquia de Sernancelhe, como sempre apostada na Cultura, e que refere:
Em fins do século X, os muçulmanos, comandados por Almançor (Al-Manshur) e partindo de Córdova, invadiram a Lusitânia e, espalhando a destruição e a morte, chegaram a Santiago de Compostela. Às pequenas comunidades por onde aqueles iam passando não restou senão a fuga, salvando apenas o que podiam ou tinham em grande estimação. No regresso dessa famigerada incursão, os invasores, depois de atravessarem o rio Douro, passaram por Lamego, na direcção de Aguiar da Beira, pilhando e matando as indefesas populações.
Entre os feitos de terror provocados pelos mouros, na incursão de 982, conta-se a destruição do mosteiro de monjas beneditinas de Sismiro ou Cermilo, na freguesia de Pinheiro (Aguiar da Beira), no local hoje chamado Quinta das Lameiras, tendo a maioria delas sido sacrificada a golpes de espada, entre as quais a superiora Comba Ozores. (…)
O pequeno grupo de religiosas que conseguiu escapar levou consigo uma pequena imagem de Nossa Senhora, a qual era objecto de particular devoção. Rompendo através de matagais e fragas da serra da Lapa, procuraram refúgio no alto, junto à nascente do rio Vouga, numa zona afastada do caminho já traçado pelos romanos. No alto da serra, numa grande gruta constituída por enormes fraguedos, as religiosas esconderam a pequena imagem da Senhora, talvez na esperança de um dia a reconduzirem ao convento. Tendo desaparecido as monjas que a tinham levado, a imagem aí ficou, durante cinco séculos, até vir a ser descoberta por uma humilde pastora chamada Joana.

 

Num dia do ano de 1498, uma menina apascentava o rebanho da família por aqueles montados, entre enormes fragas de granito. Chamava-se Joana, e era surda-muda de nascença. Impelida pela curiosidade, penetrou na gruta formada pela penedia e, após alguns passos, ficou surpreendida com a descoberta de uma imagem colocada no fundo da caverna. Independentemente do estado em que a imagem se conservava, Joana tomou-a como representação da Virgem e, por isso, começou logo a venerá-la com respeito e devoção. Guardando para si o segredo, a pastorinha ali voltava todos os dias com o seu rebanho, para ornar com as flores que encontrava na serra a imagem da Senhora. O caso começou a dar nas vistas dos demais pastores, até porque era estranho que o gado de Joana não mudasse de lugar de pasto, mostrando-se, não obstante, tão nédio como nenhum outro. A mãe teve conhecimento disso e ordenou à filha para levar o rebanho também para outros sítios. A menina obedeceu, mas, não querendo separar-se da imagem, meteu-a na cestinha onde guardava maçarocas de lã e a merenda, levando-a consigo para onde quer que fosse
Em casa, a imagem continuava a ser objecto de todas as atenções da pastorinha. Um dia, a mãe, irritada por a filha perder tanto tempo com aquilo que supunha ser uma boneca, arrancou-lha das mãos e lançou-a à fogueira. Naquele momento, Joana correu a salvar a imagem do meio das chamas, gritando, aflita: “Ai, mãe! Que fizeste?”
A partir daqui desencadeia-se uma série de maravilhas, que o povo apelidou de “milagres”: a imagem nada sofreu, a mãe ficou paralítica do braço e a língua da filha se soltou. (citámos).

Da vera ou inverosimilhança destes factos, não é mister aqui se cuidar.
É por demais óbvio que a lenda e a história se dão mãos. Tão óbvio quanto hoje é inquestionável ser a Lapa um lugar de amplas romarias centenárias e porfiadas peregrinações.

Mas, a Lapa, se no seu longo e devoto historial assenta esteios que lhe sustentam fama e tradição, deverá também dela alguma ao seu mais famoso aluno, Aquilino Gomes Ribeiro, nado a 13 de Setº de 1885, na freguesia do Carregal, concelho de Sernancelhe.

 

E aqui chegados, exaustivo e fora do âmbito desta breve parlenda seria relevar a presença da Lapa na obra Aquiliniana. Incontroverso é a Lapa e o seu Colégio terem deixado no Mestre uma profunda marca, ecoante desde as primícias autorais, até ao derradeiro fecho, em Um Escritor Confessa-se.
A remate, ainda assim, não me impeço de ler-vos de Terras do Demo (1919), extractos soltos deste grandioso fresco com as cores do mundo, esta sinfonia com os sons da vida, extraídos do Capítulo Vº:

Quando chegaram ao Miradouro, guarita que cobre da chuva um santinho sem nome e o viandante que passa, atalaia, com mais outros três, aos caminhos perdidos pelos outeiros à cata dos povoados, o sol estava na agonia. A Lapa aparecia em baixo, a um arranco de cavalo, com o santuário de panos caiados a fraldejar, a casaria, pobre e alegre, de rojo para a Casa dos Jesuítas, grande e soturna, e o peso de gente que, lá em riba, subia e descia em mar-a-monta, num arruído de trabuzana.
Pelo braço de estrada fora rompiam ranchos em algazarra, bestas rinchonas caracolando e maltas de varapau leva que leva. Lá adiante, no morrer da baixa, o melhor de uma aldeia, harmónio fungando, cores a berrar, avançava num animado passo de dança. Sozinhos, chegado um ao outro, lá passavam dois casadinhos de fresco; bem se lhes via nos olhos muito mexidos a vergonha de se mostrar. Tropicavam azeméis com velhos de capote e chapéu braguês para a nuca, e éguas de albarda com matronas de lenço de seda, peito coberto de oiro e tamanquinha de Viseu no bico do pé. Para aguentar o passo, outras mulheres tinham as chinelas e com elas na mão, a par do sombreiro, ou à cabeça sobre o chaile, desunhavam-se todas tep, tep. E lá seguia tudo a catrapós, no frenesi de meter com sol à festa, que o mês de Agosto c’os seus santos ao pescoço não tinha melhor que a Senhora da Lapa, a rica Senhora da Lapinha.

(…)
Chegadas, porém, ao largo do pelourinho, que é a boqueira do povo, de pedintes, entre a gentiaga em vaganau, só se toscavam os pirangas que trocaram o trabalho pela vida marota, e os zoratos que fazem graçolas de mono, e arremedam bandurras no varapau a que se encostam.
Já mal se rompia. Lá estavam as vareiras, com as chapeletas sobre a caraminhola, de mangas arregaçadas diante das barricas, sobre que abririam as pernas a verter águas, quando ao peixe fosse mister de molho. Atrás delas, os burros dos festeiros cismavam com o relvão saboroso de Maio, que já lá ia. Os adjuntos, mormente à porta da Miquelina, que não precisava pôr o ramo, de caneca alçada beberricavam Para a outra banda, os romeiros de longes terras empilhavam-se nas escaleiras do pelourinho e suas abas, nas cercanias da velha cadeia, tão velha que já nem se sabia quando guardara homem. Entre eles nem ficava chão para pôr um pé. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lódão no ar, tau-tau, viva a rusga! Logo na cola, um harmónio gemia o fado, e os dançarinos, de volta, em rijos saracoteios, vá de frente, vá de lado, batiam a terra a mata cavalo.
— Auguinha fresca !
— Merca doces da Teixeira!
— Paulitos, fortes, e almirantes!
Era um dia de juízo. Esvaziavam-se para ali as terras de muitos concelhos; ainda havia gente para a guerra em Portugal!
(…)
Diante da casa dos Jesuítas, tornada em Colégio, as tendeiras, nas barracas de lona, não tinham mãos a medir. Vendia-se ali de tudo, berimbaus, palhaços que alçam as pernas por riba dos ombros, guisos ásperos para adormecer meninos, os bons canivetes de marca de anzol, faixas de oito voltas e linhas para quem se quiser coser.
(…)
Mais arriba, a entestar com o santuário, alinhavam as chafariqueiras; tomava-se ali toda a casta de bebidas, desde o café à limonada. Pelo meio, rondavam os moinas, que as melhores frangainhas serviam naquelas barracas. O palminho do rosto, a poeira, o calor da bursunda, ou o frio da noite ajudavam à veniaga e era chícara cheia, chícara vazia. A Lapa vivia daquilo e dos padeiros. A água do sítio – ali tem o Vouga a mãe – era rija e fintava-se um pão que nem a senhora República em Lisboa o comia melhor. A Lapa abastecia tavernas e casas ricas pelas redondezas. Em duas alas, sobre tarimbas, ao entrar para a igreja, ofereciam as padeiras o pão. E até Nossa Senhora no penedinho recebia o bafo ainda morno da rescendente fornada. Vendedeiras de boa disposição a fazer bem, padeirinhas de pele rosada e cabelo loiro chamavam os faiantes que gostam de se desougar ou arreitar a fêmea por feiras e romarias.

 

Contra o Colégio, armavam as doceiras; bolos, fálgaros, rebuçados em tabuleiros de que choviam rendas e badalhocas; e debaixo do arco que do Colégio dá passadiço para a Capela, em lençóis à dependura das paredes, havia ricos ramalhetes de tafetá, amores perfeitos em chita, raminhos com pena de canário, tudo mais catita que um jardim no maio.
Na Lapa, caramba, havia de tudo, o bom melão, a boa fruta, cachos do Távora, dos temporões, enguia, vitela, uma moça frescalhota para gozar. E, mesmo pelas sombras, estes negociantes da trama, sem poiso fixo, os criadores de furão, os jogadores da vermelhinha, e até os ciganos de má morte. Sem falar nos ourives e relojoeiros que, de lembrança, vinham pôs à ilharga esquerda do templo, quando se entra, sempre com variado e rico sortido, para arriar noivas e sorver a pecúnia dos Brasis. Podia gastar uma fortuna quem fosse rabaceiro ou amigo de doidejar. A Senhora de Agosto era uma só entre o Douro e o Dão.
(…)

Caríssimos, subamos então à Lapa, muito folgando e declarando ganho o dia, se estes excertos tiverem tido o valimento, a uns de recordar, a outros de despertar desejos para leituras ou releituras no porvir, e a todos de aguçar apetites para a apreceituada romaria que nos espera ainda hoje e sempre, pelos lapêdos d’antanho.

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