Triste fado

A reputação e respeitabilidade, que antes a distinguiam, degradam-se, assustadoramente, a cada dia que passa. Por culpa de todos, mas muito especialmente pelas burradas e cavalices dos sucessivos governos que foram incorporando entropias no sistema, tratando o ensino como uma mercearia de bairro que vende fiado.

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  • 10:22 | Sexta-feira, 19 de Junho de 2020
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Se há profissões que se têm vindo a desqualificar socialmente, a dos professores é um exemplo claro.

A reputação e respeitabilidade, que antes a distinguiam, degradam-se, assustadoramente, a cada dia que passa. Por culpa de todos, mas muito especialmente pelas burradas e cavalices dos sucessivos governos que foram incorporando entropias no sistema, tratando o ensino como uma mercearia de bairro que vende fiado.

A propósito da indecência do trato, recordo um episódio vivido pessoalmente. A história tem poucos anos, é verdadeira, só mudei o nome a alguns protagonistas, por respeito à protecção da identidade. Eu era o professor, Rosa, a aluna, Lina, a mãe da menina. Rosa era simpática, aplicada, mas tinha imensas e indisfarçáveis dificuldades de aprendizagem. Para aprender, era o cabo dos trabalhos, um mar de frustrações, o pouco que entrava era a muito custo. Lina revoltava-se por a filha ser diferente dos colegas, não acompanhar a matéria como os outros e ficar para trás nos estudos. Ficava triste por Rosa não ser igual aos demais. Com a raiva, vinham-lhe as lágrimas aos olhos e uma tristeza sem fim vincava-lhe as rugas. Eu virava-me, e esforçava-me, para dar a Rosa infinitas atenções e cuidados para que ela pudesse ir melhorando. O melhor que podia e sabia, como era a minha obrigação. Rosa mostrava progressos, mas não na medida do que eu tentava e a mãe queria.


Passaram os meses e os anos, talvez três. No final do ciclo, num dia como outro qualquer, e foram tantos, que lhes perdera a conta, como director de turma, chamei a mãe à escola. Talvez fosse por uma boa nova, esperançou Lina, mas logo se desenganou. Eu, embrulhando-me nas palavras, disse-lhe o que, cautelosamente, vinha repetindo, que a Rosa tinha muitos problemas, que mobilizara e diversificara estratégias, que tentara tudo. Mas Rosa não dava mais. Foi como uma pedrada no estômago de Lina. Um momento de tortura para ambos, para mim, que não me fazia entender, para a mãe que queria tudo, menos perceber.

Que raio de sorte a dela, que desenhara para a filha caminhos sem pedras e uma vida com jardins à volta. A única ambição era deixar à sua menina uma “enxada” leve que lhe desse sustento e garantisse o futuro. Quem lhe poderia querer mal por isso? E mesmo essa, tão pouca, parecia que lhe escapulia das mãos.

Um curso, fosse ele qual fosse, era o objectivo, por ele prometera e estava disposta a empenhar as terras, a sacrificar o que tinha, até a saúde, se preciso fosse. Cozinheira, cabeleireira, balconista, o que fosse era muito. Rosa sorria, parecia alheia a tudo, sendo igual ao que fora durante três anos. Soluçando, por entre as palavras não ditas, já em desespero, Lina, contristada, desprendeu-se de receios e vergonhas e tentou a sorte com o último argumento que lhe veio à ideia. “Então, mas será que nem para professora?”

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Publicado em Opinião