Só quero um café!

No degrau de pedra da taberna do falecido Zé Menicha, na porta que tem aquelas fitas plásticas penduradas para impedir a entrada das moscas – na verdade entram na mesma – estava sentado, o Xanata. Era um desgraçado que toda a vida vivera portas-meias com Baco, o deus que ajuda a matar as tristezas e […]

  • 10:45 | Terça-feira, 25 de Fevereiro de 2014
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No degrau de pedra da taberna do falecido Zé Menicha, na porta que tem aquelas fitas plásticas penduradas para impedir a entrada das moscas – na verdade entram na mesma – estava sentado, o Xanata. Era um desgraçado que toda a vida vivera portas-meias com Baco, o deus que ajuda a matar as tristezas e a celebrar as alegrias da vida. Mas, Baco, apesar de ser um deus, tratou de o abandonar numa altura em que o “ordinário” do médico de família, lhe disse:
– “Se continuas assim, vais pró galheiro, pá. Já não tens cabedal prá borracheira! Tu é que sabes, mas, se fosse a ti, mudava de vida e de bebida. Olha, bebe café que sempre é melhor!”.
E foi ali, naquele preciso momento, que o companheiro celestial de tantas celebrações, o abandonou, vá-se lá saber porquê. O Xanata deixou mesmo a bebida que lhe dava alento e passou a sorver – não sem repugnância no princípio – um café, quase sempre cravado a quem calhava.
Hoje, pela manhã, entrou o Silva. Um emproado funcionário público, magríssimo, daqueles que tem um pijama com uma risca só, desiludido com tudo e com todos, mas teimoso que nem uma mula da GNR. Era um tipo azedo, com uma mulher que devia beber ácido sulfúrico, tal era a raça da bicha.
O Xanata, sonolento, com os olhos semicerrados por causa deste sol de Inverno, levanta a pala da boina e cumprimenta-o
– “Sr. Silva, bom dia!”
– “Bom dia. Olha lá queres uma cerveja?” – tenta-o.
– “Não, obrigado. Não bebo. Só quero um café”.
O Silva parou no meio das fitas e olhou, então, com mais atenção o miserável que recusava uma cerveja em troca de um a bica. Com um casaco maior que o cabide dos seus ombros, calças rotas no joelho – por acaso agora até é moda!- uma espécie de camiseta, suja, botas que já tinham conhecido melhores dias e melhor dono, o Xanata inspirava um dó que ia para além de um simples cafezito. Generoso, adiantou:
– “Olha, faço melhor. Ofereço-te um bilhete da lotaria, pode ser que fiques rico. Sabe-se lá!”
– “Não, obrigado. Não jogo. Só quero um café”.
O Silva insistiu:
– “Tu é que sabes! Queres ao menos um cigarro?”
– “Não fumo. Só quero um cafezinho” – recusa o Xanata.
– “Diabo, pá. Queria fazer alguma coisa por ti!”.
Baixando a voz, diz-lhe:
– “Olha, e se eu te der uns cobres para ires dar uma queca à Micas do Canto?”.
– “Não, obrigado. Eu não traio a minha mulher. Só quero um café”.
Então o Silva, rápido e desengonçado na magreza, baixa-se, deita-lhe as mãos à gola do casaco, levanta-o com esforço, mede-o de alto a baixo, aguenta o cheiro de um corpo que não via água desde a molha apanhada no invernoso dia da festa do Santo Ildefonso em Esmolfe, e diz-lhe voz firme:
– “Vens comigo a minha casa, já!”.
– “Lá, há café?”.
– “Não! É para mostrar à minha mulher, o aspecto miserável em que fica um homem que não bebe, não joga, não fuma e não dá uma f… por fora de vez em quando!”.

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