Salazar e a Santa

A Carminda e o Guedes andam esquisitos (cabisbaixos e sisudos, será o melhor termo para definir a situação). Encontrei-os no minimercado da Virita a sussurrar junto ao expositor dos queijos, com um ar beato e de quem se preparava para sofrer todos os males do mundo. A palmadinha nas costas com que habitualmente saúdo o […]

  • 10:18 | Sexta-feira, 04 de Abril de 2014
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A Carminda e o Guedes andam esquisitos (cabisbaixos e sisudos, será o melhor termo para definir a situação). Encontrei-os no minimercado da Virita a sussurrar junto ao expositor dos queijos, com um ar beato e de quem se preparava para sofrer todos os males do mundo. A palmadinha nas costas com que habitualmente saúdo o meu compadre, não funcionou desta vez. Virou-se lentamente e de cabeça, caída ao lado, num ar de desalento que comia a alma (lembrou-me o rafeiro Black quando suspirava pela Branca da Maria Bolacha).
“-Viva Rufino!” – e manteve o mesmo ar infeliz como se a sua vida fosse acabar ali mesmo, junto da arca frigorífica.
“-Olá, primo!” – tremelicou a voz da minha prima.
”-Morreu alguém?” – a minha preocupação era a sério.
Pelos vistos, a coisa estava preta naquelas bandas e nenhum deles estava no seu estado normal. Algo, de verdadeiramente grave se passava e, como os amigos são para as ocasiões, comecei a sentir um ligeiro pânico – que atribuí mais à ignorância sobre o problema deles, do que a algum acontecimento nefasto, propriamente dito. Inconscientemente sentia que, se o caso tivesse a dimensão de uma calamidade pública, eu já saberia.
Insisti:
– “Vocês estão bem? Morreu alguém? Algum amigo?”
– “É. É quase isso!” – desabafaram quase ao mesmo tempo. E, puxando-me para a rua, deram-me conta daquilo que os preocupava. A montra da Farmácia Claro foi testemunha do sofrimento mental e quase físico da Carminda e do Guedes. O caso, aliás, não era para menos. Conhecendo-os eu, como conhecia, ia, pouco a pouco, tomando conta e avaliando a dimensão da sua preocupação. As pessoas que tinham sido um farol de virtudes nas suas vidas, estavam na origem de tudo. A honestidade, o rigor, o comportamento cristão, o apego à família, o espírito de sacrifício, a bondade, o amor à Pátria, o desapego às coisas mundanas, a nobreza de carácter, a probidade, a discrição, a serenidade, o bom senso, enfim, todos os dons e qualidades que, durante décadas, secretamente, acreditaram serem as referências da pessoa que mais admiravam, António de Oliveira Salazar, estavam a ser postas em causa e discutidas na praça pública. O que mais lhes doía era o escárnio com que a vida pessoal do ditador era tratada pelos seus detratores. Ele, que fora “um patriota e um cidadão exemplar”! O mundo caíra em cima das suas convicções mais íntimas. O Deus escondido que lhes alimentara as esperanças de uma sociedade sem sobressaltos, estava a cair aos poucos, diante de todos, sem apelo nem agravo e sem haver uma “alma caridosa e esclarecida, que o defendesse às claras, gritando alto e bom som que o país lhe devia muito”.
– “A Guerra de 45, compadre…se não fosse ele…A minha mãe contava…”, e lá vinha um rosário de dificuldades, doenças, fome e miséria, apenas possíveis de ultrapassar graças às bênçãos e benefícios que Portugal tinha usufruído por influência e pela política seguida e praticada por Salazar.
– “Agora”, murmurava a Carminda, “até amantes, uma quantidade delas, lhe apontam”. Ele que sempre fora um esteio moral para as suas convicções sobre o celibato.
– “Pior”, balbuciava o Guedes, com uma fúria que o incapacitava de levantar a voz, “algumas delas até dizem que eram casadas”. O adultério era uma coisa inconcebível para o Guedes, casado com a Isaura, sua companheira há mais de trinta anos, pai de três filhos e avô de dois netos e que nunca a trocara, mesmo ocasionalmente ou em espírito.
Um “crime de calúnia e de difamação dos jornais, dos livros e da televisão”, diziam eles, estava a ser praticado sem que a vítima se pudesse defender, e, eu, já arrependido de me ter metido no meio das confissões tão íntimas daquelas duas almas defraudadas pela democracia, comecei a tentar descobrir de que modo poderia sair-me airosamente sem lhes dizer de uma vez só, que, “o que está morto, enterrado está e cheira mal”.
Comecei, tentando dar uma no cravo e outra na ferradura. Não podia sanar a questão com um “deixem-se dessas coisas, estes gajos têm dor de corno”, ou “falam mas nunca lhe chegarão aos calcanhares ” ou, ainda, “só se fala de quem tem valor”. Os amigos amparam-se nas aflições, não se abandonam nem se humilham. Tinha-me metido numa camisa-de-onze-varas e, agora, procurava sair airosamente desta situação complicada para mim e dolorosa para eles.
– “De facto, nos últimos anos têm sido publicados muitos livros e muitos artigos sobre o Salazar, a maior parte dos quais mais interessada em divulgar a sua vida privada do que analisar as virtudes ou os erros da sua governação. É uma reacção natural nas sociedades e da curiosidade humana a funcionar: procurar saber mais sobre quem detém ou deteve o poder. A História faz-se assim: com o conhecimento do que foi notoriamente público, e, da influência da vida privada dos protagonistas no ocorrer dos acontecimentos. Para além disso, o secretismo que Salazar sempre quis impor sobre a sua clausura em S. Bento e sobre a sua vida privada, desperta curiosidade, em contraponto ao mediatismo dos nossos políticos, e, à devassa, a maior parte das vezes semi-autorizada, do seu dia-a-dia”.
Ganhara a sua atenção. O que até nem era mau! Procurara dar-lhes uma explicação aceitável para o interesse súbito pela vida de Salazar.
– “Olhe, compadre Guedes, uma coisa é certa, pelos vistos o Salazar não era maricas, mas sim um verdadeiro Macho Latino, daqueles que não deixaram o bom nome da virilidade dos portugueses, por mãos alheias. Um português à maneira antiga, dos que não perdiam nenhuma queca bem dada. Com as mariquices que andam por aí, tomaram estes políticos de hoje ter um sopro da tusa do homem”.
O Guedes riu. O que era bom sinal!
– “Carminda, já pensaste que há males que vêm por bem? Já viste que afinal, o Salazar é o causador da Igreja poder vir a ter mais uma santa nos altares? Olha, rapariga, ainda ninguém se lembrou disso e, acho que tu podias fazer um figurão e calar esses tipos que ganham uma fortuna à conta de quem caricaturam nos livros e nas séries da televisão”.
Empinou as orelhas! Toquei-lhe no ponto fraco! Igreja e santos eram com ela! Se tudo estivesse ligado com o seu respeitado mentor político, melhor ainda: seria ouro sobre azul.
– “Ora, Rufino. Como?” – arregalou os olhos, grandes e pretos como azeitonas.
– “Tens que entrar em contacto com o Sr. Bispo de Viseu e dar-lhe conta de uma novidade que todos estão a deixar passar em claro. Será a tua Glória e a tua Vingança. No meio desta devassa da vida privada de Salazar, descobriu-se que, a sua eterna governanta, a D. Maria, morreu virgem, contrariando toda a má-língua que sempre perseguiu a bendita senhora. Já percebeste? Como é que uma mulher vive mais de 40 anos com um galifão que papava tudo o que aparecia pela frente, resiste? Só sendo santa! A D. Maria pode passar a chamar-se Santa Maria de S. Bento ou Santa Maria de Santa Comba!”
E a Carminda chorou de alegria! Benza-a Deus!

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