Relvas

O caso Relvas impressiona-me muito. Um amigo meu, que vive fora do país, diz que tudo isto é sinal de um país de parolos, ou seja, um claro sinal de subdesenvolvimento de uma sociedade em que se presta muita atenção aos títulos e muito menos atenção ao valor intrínseco associado a um título académico. Valor […]

  • 11:13 | Sexta-feira, 26 de Junho de 2015
  • Ler em 3 minutos

O caso Relvas impressiona-me muito. Um amigo meu, que vive fora do país, diz que tudo isto é sinal de um país de parolos, ou seja, um claro sinal de subdesenvolvimento de uma sociedade em que se presta muita atenção aos títulos e muito menos atenção ao valor intrínseco associado a um título académico. Valor que tem de se traduzir em conhecimento, capacidade de o usar para gerar mais conhecimento, atividade económica, atividade cultural e de divulgação, bem estar social e transformações de todo o tipo.
Obter um grau académico só para o exibir, como status social, ou com ele aceder a lugares na administração pública, ou ainda como forma de justificar algum tipo de competência é típico de uma sociedade doente que liga ao assessório e não ao que realmente interessa, ou seja, a capacidade demonstrada de numa determinada área ser capaz de ser elemento de transformação.
Quando ouço, vejo e leio as várias coisas sobre a “licenciatura” de Relvas, as equivalências sem sentido, a desfaçatez em atribuir créditos sendo subservientes ao poder, a panóplia de ilegalidades e atitudes provincianas, lembro-me de um filme fantástico protagonizado por Vasco Santana em que ele representava um aluno cábula de medicina: “A canção de Lisboa”. Há uma cena no Jardim Zoológico em que o cábula é confundido pelo tratador do jardim com o veterinário que normalmente lá prestava serviço. O cábula, que estava com dificuldades em “enganar” as tias ricas sobre a sua situação escolar, insiste com o tratador para lhe chamar doutor: “Chame-me doutor, homem!”, “Diga alto que eu sou doutor”, e virando-se para as tias perguntava triunfante, “Sou ou não sou doutor?”. Uns segundos à frente, já no papel de falso doutor, percebeu que o Jardim Zoológico lhe pagava 20 escudos por cada animal que ele visse, pelo que arranjou logo um esquema para ver todos os animais do jardim. Viu a Girafa, a foca, os pombos, o elefante e chegou finalmente aos macacos para dizer: “Vocemecê já me deve um dinheirão. 20 macacos a 20 macacos são 400 macacos, com mais 180 macacos…,”, uma data de massa. Não sei porquê mas lembro-me sempre do Relvas quando vejo essa cena. Deixo ao leitor as associações que quiser fazer, e escuso-me de explicar as que eu faço. Parecem-me evidentes. Mas a parte relevante é que esse filme se reporta a uma altura (1933) em que Portugal era reconhecidamente um país atrasado, muito rural, provinciano, onde poucos estudavam e faziam estudos superiores. Nessa altura, ser “doutor” (deveria ser “Dr.”, porque “Doutor” é um doutorado) tinha um enorme impacto social e era, como até há muito pouco tempo atrás, algo que tinha mais valor facial do que intrínseco, isto é, como garantia de capacidade e competência numa determinada área de conhecimento. O que este infeliz caso de Relvas mostra é que se calhar o ano de 1933, e a realidade que representava, não está assim tão longe e este país, apesar de tudo, da revolução, da liberdade, dos milhões da Europa, das oportunidades que teve e que perdeu, não mudou assim tanto. E isso é que é verdadeiramente triste. O Relvas é só um personagem que aparentemente sobreviveu ao tempo e saltou dessa altura para agora. As roupas são diferentes, são de hoje, as marcas caras do relógio, do iPad, etc., são de hoje, mas o software é bem antigo e a maneira de atuar é exatamente a mesma. O que me deixa pasmado não é a “miséria moral” que tudo isso representa. Não. O que mais me admira é que esse “senhor”, vindo do passado, foi ministro de um Governo de Portugal no século XXI. E se calhar vai ser “doutor” com diploma passado pelo tribunal. É que, como tudo em sociedades doentes, talvez os prazos da decência já se tenham esgotado.
(Publicado no Diário As Beiras de 26 de Junho de 2015)

Gosto do artigo
Publicado por
Publicado em Opinião