“Portugal, o bom colonizador?”

Mas fomos os “campeões” do tráfico negreiro: dos 12,5 milhões de escravos transportados de África para as duas Américas, Portugal foi responsável por quase metade, 5.850.000 (para o Brasil), seguido por Inglaterra (3.260.000), França (1.380.000), Espanha (1.080.000) e Holanda (554.000). Mais de dois milhões terão morrido no transporte em condições desumanas.

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  • 14:58 | Segunda-feira, 20 de Junho de 2022
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 Este título foi o tema de uma conversa com o historiador Miguel Cardina, no passado 18 de Maio, em Viseu, na Carmo 81 (onde também esteve patente a exposição de fotografias sobre a Guerra Colonial “As Lavadeiras da Guerra”, de Fátima Teles, a documentar a violência cultural e sexual sobre as mulheres africanas colonizadas), uma iniciativa da Plataforma Já Marchavas e da CULTRA – Cooperativa Culturas do Trabalho e Socialismo, inserida nas comemorações dos 50 anos da revolução de Abril – ABRIL É AGORA.

Cardina utiliza a expressão “nacionalismo banal”, teorizada por Michael Billig, professor emérito de Ciências Sociais na Loughborough University, para aludir ao “conjunto de práticas, de rituais e de discursos que tecem as formas como a nação se imagina e reproduz a si própria”. E dá exemplos: discursos de Cavaco Silva, que não fala uma só vez de colonialismo e esclavagismo mas recupera o “lusotropicalismo” do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, de que Salazar (pela mão de Adriano Moreira) se apropriara, apresentando os portugueses como colonialistas diferentes dos demais, benignos, de “brandos costumes”, que tendiam para se miscigenar com as mulheres nativas (como se outros não o tivessem feito, muitas vezes à força, como nós!); as letras de algumas canções dos Heróis do Mar ou dos Da Vinci (“O Conquistador”), nos anos 80, “naturalizando o nacionalismo, já não com o colonialismo como elemento essencial, enquanto realidade política, mas enquanto imaginário”. Como disse Eduardo Lourenço: “um colonialismo não colonial, imaginado por Portugal”.

Esta “afasia colonial” (na expressão da historiadora e antropóloga Ann Laura Stoler), a incapacidade de nomear o passado colonial e verbalizar a violência constitutiva do colonialismo, já começou a ser posta em causa na sociedade portuguesa, o que levou o actual presidente da República a exortar ao seu estudo, mas sem “autoflagelações globais excessivas”. Com tantos paninhos quentes sobre as feridas do colonialismo, Marcelo Rebelo de Sousa acabaria por cair, também ele, no Senegal, num discurso mistificador e mitológico, dizendo que “ Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura, em 1761”. Ora, na verdade, Pombal apenas proibiu o tráfico negreiro directamente para a metrópole, onde a escravatura permaneceu legal até 1773, continuando o transporte de escravos para o Brasil (para os engenhos do açúcar, a mineração de ouro e diamantes e as culturas de algodão, arroz e café) a ser permitido até 1856 (34 anos depois da independência desta colónia, em 1822), por força da Lei Eusébio de Queirós, de 1850 (no entanto, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, em 1888, com a “Lei Áurea”). Portugal só aboliria o tráfico de escravos no resto do Império em 1869 e a escravatura em 1878, quando já tinha sido abolida em 15 países.

A escravatura terá surgido em Portugal desde a sua fundação, na chamada “reconquista cristã”, com os mouros submetidos à condição de cativos, embora o termo “escravo” só tenha surgido no século XV com as primeiras levas massivas de negros aprisionados e transportados da Costa Africana para o Reino, onde passaram a fazer os trabalhos mais sujos e duros, ao serviço de nobres, clérigos e artesãos, e para os engenhos de açúcar das ilhas atlânticas, que mais tarde se expandiriam para o Brasil. Portugal não inventou este tráfico, uma vez que árabes, venezianos e genoveses já tinham traficado escravos. Mas fomos os “campeões” do tráfico negreiro: dos 12,5 milhões de escravos transportados de África para as duas Américas, Portugal foi responsável por quase metade, 5.850.000 (para o Brasil), seguido por Inglaterra (3.260.000), França (1.380.000), Espanha (1.080.000) e Holanda (554.000). Mais de dois milhões terão morrido no transporte em condições desumanas.


Não somos responsáveis pelos crimes dos nossos antepassados, mas não devemos escondê-los, nem, muito menos, justificá-los com o chamado “espírito da época”, o recorrente bode expiatório da má consciência histórica. Em todas as épocas houve quem resistisse e denunciasse os crimes contra os direitos humanos. Basta recordar as   três “Guerras Servis” que ocorreram na Roma Antiga, desde 135 a.C. até 71 a.C. contra as condições desumanas como tratavam os escravos e gladiadores.  A última destas revoltas ficou na História como a “Terceira Guerra Servil”, “Guerra dos Gladiadores” e “Guerra de Espártaco”. Espartacus e outros líderes chegaram a ter consigo 120 mil escravos e gladiadores (incluindo mulheres e crianças) que, porém,  acabariam por ser aniquilados por oito legiões romanas.

Em Angola, no séc. XVI, houve movimentos de resistência à escravatura, por parte de milhares de homens e mulheres que se organizavam em acampamentos fortificados chamados  “Kilombos”, tendo conseguido destruir algumas estruturas de tráfico dos portugueses. O mesmo aconteceu na Guiné, com o povo Bijago.  No Brasil, deram o nome “Quilombo” aos acampamentos de escravos fugitivos, tendo o de Palmares resistido durante 100 anos às investidas de portugueses e holandeses até os quilombolas serem massacrados em 1694, depois de 42 dias de cerco.

Se o padre António Vieira transigiu com a escravatura dos negros, a pretexto de impedir a dos índios (considerados mais permeáveis à conversão cristã), já Frei Fernão de Oliveira, que viveu antes daquele e foi autor da primeira gramática de língua portuguesa, em 1536, escreveu contra toda a escravatura, de índios e negros, tal como fizera, embora tardiamente, Frei Bartolomé de Las Casas, pela mesma altura, ao denunciar os maus tratos de espanhóis e portugueses aos nativos nas “Índias” e em África.

Mas voltemos à conversa com Miguel Cardina. As colónias portuguesas nas constituições de 1822 e 1911, eram designadas por “províncias ultramarinas”. Salazar, na Constituição de 1933, passou a designá-las por “colónias”, mas, em 1951, perante o apoio da ONU à descolonização, volta a denominá-las por “províncias ultramarinas”. Surpreendente é que ainda hoje, 48 anos depois do 25 de Abril, se ouçam por aí,  sobretudo por parte de antigos militares, expressões como “Guerra do Ultramar”, “ex-combatentes do Ultramar” ou até o oficial Monumento aos Combatentes do Ultramar.

Salazar, ainda ministro interino das Colónias, em 1930, decretou o Acto Colonial, onde reafirmava, de forma nitidamente racista, a distinção entre “civilizado” e “indígena”.  A Sociedade das Nações e a Organização Internacional do Trabalho fizeram pressões para se ilegalizar o trabalho forçado nas colónias que mais não era do que uma forma mitigada da escravatura contornando a sua abolição. Mas só um ano depois do levantamento armado em Angola, em 1961, é que o ministro do Ultramar, Adriano Moreira, revogou o Estatuto do Indígena que instituía o trabalho forçado.

Foram vários os documentos e regulamentos, da Monarquia ao Estado Novo, com que se pretendeu legitimar o trabalho “serviçal”, “compelido”, “correcional”, “contratado”, tudo eufemismos para trabalho escravo. Mesmo a 1ª República, embora garantindo alguns direitos laborais aos indígenas, não deixou de se aproveitar da mão-de-obra forçada de homens, mulheres, crianças e velhos, nas obras públicas, segundo sustenta a viseense Anabela Silveira  (que foi investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa), no seu artigo “Dos regulamentos do trabalho Indígena à sua ineficácia prática. «Natureza Morta» – o caso angolano”, cuja leitura recomendo e pode ser consultado on line na página Academia.edu ou neste blog, “Rua Direita” de 25.04.2021). Silveira cita Henrique Galvão, no relatório de 1947 para o ministro das colónias, Marcelo Caetano, onde deixava claro que a “vida dos pretos” não melhorou com o fim da escravatura porque “Na vigência desta, o preto comprado (…) constituía um bem que o seu “dono” tinha interesse em manter são e escorreito (…). Agora o preto não é comprado, é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre”.

O racismo actual, do mais subtil e estrutural ao vociferado pelos broncos da extrema-direita, está umbilicalmente ligado ao nosso passado colonial que não pode ser obliterado, nem mitificado pela História e, por isso, temos de continuar a estudá-lo e debatê-lo sem peias.

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Publicado em Opinião