Portugal e os portugueses numa autópsia de Junqueiro

A ferocidade da sátira envolveu desde as mais altas hierarquias até ao pároco da aldeia. Denunciou a conduta religiosa que, em nome da fé em nome de Deus, mergulhava nas malhas obscuras da política quotidiana, para favorecer interesses institucionais e materiais e reforçar o poder em todas as instâncias.

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  • 22:49 | Sexta-feira, 24 de Novembro de 2023
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O centenário da morte do poeta permite revisitar a sua obra repleta de testemunhos implacáveis acerca de Portugal e do comportamento dos portugueses e a ausência das soluções necessárias para ultrapassar as crises.

Os grandes acontecimentos nacionais e internacionais que se verificaram no tempo de Guerra Junqueiro (1850-1923), refletiram-se na conduta do homem e na obra do poeta. Basta citar o Finis Pátria (1890) e a Pátria (1896), dois livros de combate, onde procurou retratar ou caricaturar as tendências dominantes no país real e as singularidades do temperamento e do carácter dos portugueses.

Espetador e interveniente nas guerras e nas guerrilhas, que agitaram a vida política, social e cultural portuguesas, Junqueiro acompanhou de perto as consequências do Ultimatum de 1890 e da Revolução Republicana do 31 de Janeiro.


Os ataques desferidos por ocasião da ditadura de João Franco levaram-no à barra dos Tribunais. Este consulado político que decorreu entre Maio de 1906 e acabou com o Regicídio (1 de Fevereiro de 1908), precipitou o fim da Monarquia e abriu caminho para a instauração da República.

Junqueiro também seguiu de perto os anos agitados da República: a repetição de erros crassos, desvios graves e as violências sangrentas, ainda assistiu a mais duas ditaduras, a de Pimenta de Castro (28 de Janeiro de 1915 a 14 de Maio de 1915) e a de Sidónio Pais ( 9 de Maio de 1918 a 14 de Dezembro de 1918 ) que deixaram feridas abertas. A 28 de Maio de 1926 – Junqueiro havia falecido a 7 de julho de 1923 – implantava-se ainda mais outra ditadura portuguesa no século XX. A tomada do poder pelos militares, seguida pela ditadura de Salazar que se estendeu por mais de quatro décadas, até ser derrubada pelo 25 de Abril.

A publicação de sucessivas edições do Finis Pátria e da Pátria, desencadeou uma controvérsia política enquanto, o aparecimento d’A Velhice do Padre Eterno (1885), circunscreveu-se a uma polémica sem precedentes, no âmbito da igreja católica. A ferocidade da sátira envolveu desde as mais altas hierarquias até ao pároco da aldeia. Denunciou a conduta religiosa que, em nome da fé em nome de Deus, mergulhava nas malhas obscuras da política quotidiana, para favorecer interesses institucionais e materiais e reforçar o poder em todas as instâncias.

O panfleto da autoria do Padre Sena Freitas, Autópsia da Velhice do Padre Eterno atingiu o auge das contestações que se mantiveram depois da morte de Junqueiro. Estabeleceu tamanha confusão que, dificilmente, se poderia concluir que Junqueiro, se limitava a combater a superstição, o medo e o terror nas consciências. A existência de Deus e a figura de Cristo, nunca foram postas em causa. Mas o salazarismo – «orgulhosamente só» – ignorou o Concílio Vaticano II promovido por João XXIII e executado por Paulo VI.

PÁTRIA E PIA

Já o Finis Pátria e a Pátria constituem um ataque implacável à dinastia de Bragança concentrada, fundamentalmente, no rei D. Carlos, na corte que o cercava, nos partidos que se alternavam nos Governos e nas instituições comprometidas numa permuta de malabarismos movidos através dos caciques nacionais e locais.

Se ambos os poemas são escaldantes, encontra-se um texto muito mais explosivo integrado como apêndice da Pátria. Ultrapassou a crítica vigorosa de Ramalho, em numerosos volumes as Farpas; a ironia penetrante de Eça, nas suas grandes obras e nas crónicas ocasionais. Assemelhava-se à fúria bravia que percorre os Gatos de Fialho. Perante a sociedade que o rodeava, Junqueiro não hesitava em alertar numa comparação com o episódio da ressurreição descrito na Bíblia: «se Cristo, entre ladrões, fosse crucificado, em Portugal, ao terceiro dia, em vez do Justo, ressuscitariam os bandidos. Ao terceiro dia? Que digo eu! Em 24 horas andavam na rua, sãos como peros, de farda agaloada e a Grã Cruz de Cristo». E quais os motivos que davam lugar a esta situação degradante? Junqueiro – e optamos por transcrever as suas próprias palavras – responsabilizava os partidos que alternavam no exercício da governação, (o Partido Progressista e o Partido Regenerador). Permaneciam «sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes na hora do desastre, de sacrificar uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e perverso, análogos nas palavras, idênticos nos atos, iguais um ao outro». Perante esta e outras evidências, Junqueiro não resistia a advertir: «Da mera comuna de estômagos não resulta uma Pátria, resulta uma Pia». Assim deplorou a influência nefasta de «uma burguesia politicamente corrupta até a medula», «sem palavra, sem vergonha, sem carácter»; «pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos» A sociedade encontrava-se em manifesto declínio: a «parasitagem burocrática”, a «advogalhada de São Bento», misturadas com «traficâncias», «corrupção visceral, glorificações mercenárias, apoteoses aviltantes revestidas de ironía céptica, galhofa cínica, humor sibarita e riso canalha».

Eis porque escrevia Junqueiro – abundavam «os quadrilheiros que infestam Lisboa e os sub quadrilheiros que infestam as províncias». A justiça ficava «ao arbítrio da política, torcendo-lhe a vara, a ponto de fazer dela um saca-rolhas». Reclamava soluções cáusticas: «anula-los, esmaga-los num dia, numa hora, sem pena e sem remorso, vazando-os logo – atascadeiro de baixezas e de malandros – pelo buraco infecto duma comua. Depois pregar a tampa. Um coletor in pace, um cano de esgoto jazigo de família»…
MUDANÇA RADICAL

O homem português em face da crise, caracterizava-se, sem margem para equívocos: “um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice, pois que nem já com orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai».

Predomina «um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares – tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra».

«O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza».

Se atacava ferozmente a classe dominante e a indiferença do povo, Junqueiro também se mostrava bastante incrédulo, em relação à maioria da juventude. Deparava «uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porém, como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos interesses».

A reforma na área da justiça impunha-se mas preconizava a urgência de uma transformação radical no domínio da educação e do ensino, desde a família, à escola e à Universidade, a fim de preparar outra geração com a dimensão moral, política e cultural para realizar um projecto de futuro. “Os homens que há muito dirigem os destinos da nação» – insistia Junqueiro – «quase sempre democratas vazios aos vinte anos, e cínicos redondos aos quarenta, são incapazes de um plano de Governo. Eles, francamente, visam, apenas, salvar o seu interesse, o seu egoísmo e as suas lantejoulas de medíocre”.

Assim resumia a «fatalidade inexorável que, em momentos cruciais, se torna indisfarçável no comportamento individual e na relação colectiva do homem português, dentro do seu próprio País.».
A ÁGUIA BAIXOU A MILHAFRE

O consumo de aspas, nesta visão retrospectiva, terá sido excessivo. Perdia-se, contudo, o cunho pessoal e intransmissível de Junqueiro. Em matéria tão polémica e tão delicada, podemos ainda lembrar que, perante a conjuntura que se vivia, na altura, «a águia baixou a milhafre». «O milhafre é útil, depura e limpa» – concluía – «Os Gatos foram, em parte, uma obra de justiça, por vezes de cólera. Mas o rancor dos bons denota ainda bondade. Só os grandes idealistas desceram a grandes satíricos. Cristo dava chicotadas» .

Cem anos depois da morte de Junqueiro – que foi, de imediato, consagrado no Panteão Nacional – não parece possível recuperar a sua obra literária. A geração de Fernando Pessoa que se afirma a partir de 1915 na revista Orpheu elegeu entre os poetas do passado próximo Cesário Verde, Gomes Leal, Camilo Pessanha e Antero. Um dos principais representantes da Seara Nova que não se identificava com o modernismo e as vanguardas – trata-se, concretamente, de Raul Proença – classificava a obra de Junqueiro, em especial as interpelações que se multiplicam nos seus livros mais contundentes de «trovoada de lata».

Seja como for, o que não resta dúvida é que perdura na criação literária de Junqueiro a veemência do protesto e a coragem da opinião, sempre que nos confrontamos com a efervescência política e a degradação social e que se tem repetido e acentuado nestes dias de angústia e de perplexidade que estamos a viver.

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