O SNS e a história da carochinha

O cidadão, de 82 anos, deu entrada no serviço de urgências do hospital do Espírito Santo, de Évora, onde foi observado às 19H00, sendo-lhe atribuída a pulseira amarela, e retriado só às 23H00, quando o seu estado piorou. Faleceu meia hora depois. Esteve 4 horas para ser atendido...

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  • 15:33 | Segunda-feira, 06 de Março de 2023
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Ainda se morre em Portugal, nos hospitais, à espera de consulta. Custa a crer que assim aconteça. Arrepia saber que assim é.

Sem partidarites, sem fundamentalismos, no século XXI, morrer-se dentro de um hospital, enquanto se aguarda para se ser consultado, dói. E é uma dor aguda, cortante.

O perigoso de tudo isto é que este não é caso virgem, daqui e dali a comunicação social vai dando conta de azares iguais. Pode haver centenas de razões, mas todas perdem a sua razão de ser, perante o contexto em que a brutalidade da morte acontece.


Estar-se a metros de um equipamento, a segundos de um profissional de saúde que nos pode salvar, e a distância e o tempo de nada valerem, deve levar-nos a pensar.

O cidadão, de 82 anos, deu entrada no serviço de urgências do hospital do Espírito Santo, de Évora, onde foi observado às 19H00, sendo-lhe atribuída a pulseira amarela, e retriado só às 23H00, quando o seu estado piorou. Faleceu meia hora depois. Esteve 4 horas para ser atendido, quando o protocolo determina que o primeiro atendimento, após a triagem, não deve ser exceder 1 hora. Não, não foi no tempo da monarquia, ou da 1.ª República, menos ainda da malfadada ditadura ou do maldito Estado Novo, foi na 4.ª feira passada.

Os constrangimentos são a desculpa de todos os dias, inquéritos é o que se promete, mas o senhor morreu, e a vida já ninguém lha volta a dar.

Perante casos destes, que são recorrentes, o SNS não pode continuar a ser uma vaca sagrada, um mito inatacável, um património intocável.

Não alimento o confronto estéril do público e do privado, questões ideológicas são menores perante a dimensão do inacreditável e do inadmissível. Mas que o SNS está a precisar de uma reforma a sério, do cimo ao fundo, parece-me sensato. Está doente, e haja quem olhe por ele.

Morrer nas urgências sem assistência é do diabo. Entram e saem ministros, e nenhum deles põe mão na desgraça disruptiva.

Ao fim de 50 anos, meio século, pasme-se, é o logro de todos os cidadãos não terem um médico de família, é a distracção de os centros de saúde, ou agrupamentos, não terem psicólogos e dentistas, sabendo-se como a saúde oral e mental vão pelas ruas da amargura, é a vergonha das madrugadas que não cantam, à espera de uma consulta numa unidade local de saúde, desprovidas de recursos humanos e técnicos, é a reprovação das intermináveis listas de espera para consultas, exames complementares, intervenções cirúrgicas, é a incapacidade de o governo segurar os médicos especialistas nos hospitais públicos, são os blocos e maternidades que fecham por falta de clínicos, é a incompetência na falta do planeamento, é o rol de experiências à conta dos sucessivos ministros que vão passando.

 

Por mais abonatória que seja a perspectiva por que olhemos o SNS, nada apaga este lado horrendo e tenebroso do problema crónico da saúde em Portugal.

Os que podem, têm os privados, e lá se vão safando. Os pobres morrem à espera de vez. Isto não é um retrato inventado, é uma situação vivida. Infelizmente.

Por favor, deixem-se de histórias miríficas, carregadas de ideologia cega e balofa, e de histórias da carochinha, que perdeu o João Ratão, seu noivo pedante, mas imprudente.

Se não quiserem que seja somente uma singela bandeira, botem-lhe a mão, enquanto é tempo.

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Publicado em Opinião