O que aconteceu a Israel?

A certeza que hoje tem pouca contestação é a de que as forças radicais do Governo de Bibi quiseram utilizar o 7 de outubro para uma anexação da parte norte da Faixa de Gaza.

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  • 13:31 | Segunda-feira, 06 de Novembro de 2023
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O ataque terrorista da ala militar do Hamas deve ser condenado sem qualquer rebuço, deve ser afirmado como insano. Os seus autores devem ser encontrados, julgados e punidos exemplarmente, a estrutura militar que lhes dá suporte deve ser completamente destruída.

Importa que este princípio oriente todas as Nações e se afirme base central para qualquer início de conversa no que se refere aos acontecimentos do dia 7 de outubro.

Há, porém, algumas (muitas) interrogações que não podem deixar de ter uma profunda análise.


No último ano, o governo israelita de Benjamin Netanyahu iniciou uma incomum e acelerada modificação da vida política israelita. Essa transformação visou a limitação das liberdades públicas, a introdução de restrições à vida aberta e cosmopolita que sempre se viveu no país e, mais grave, a transmutação das instituições fazendo desaparecer o Estado de Direito com o fim da independência dos tribunais e as cercas à democracia local.

Este novo executivo de Bibi, um dos políticos mais implicantes da vida israelita desde sempre, existe porque se eliminaram as barreiras da decência para manter o poder a qualquer custo.

Quem aprendeu a ler as informações cruzadas das chancelarias, quem continua a atentar nos pormenores das agências de informações para seguir o racional das orientações internas, tem vindo a questionar-se sobre os diferentes dados que estão na base da cadeia de acontecimentos destas últimas três semanas.

Talvez interesse passar por alguns deles.

Dado 1

Israel vive, desde sempre, em contingência. Em contingência provocada pela herança colonial, pelos seus vizinhos também Estados e, ainda, provocada pelos “movimentos de libertação” que consagram ameaças novas. Vejamos como se estruturam esses movimentos:

– As Brigadas al-Qassam, que se dizem o braço armado do Hamas, terão sido as grandes responsáveis pelos acontecimentos de 7 de outubro. Com 40 mil combatentes, dispõem de inteligência, sistema de comunicações próprio e aparentemente inacessível, forças especiais e defesa aérea, e têm um arsenal militar dos mais modernos do mundo árabe.

– As Brigadas al-Quds são o braço armado da Jihad Palestina. Com um pouco mais de uma dezena de milhar de homens, têm a capacidade de fabricação de armamento e já dispõem dos mais modernos drones utilizados pela Rússia na Ucrânia. Pelas prisões que se têm comprovado, dispõem de informação privilegiada de dentro dos serviços de informações israelitas.

Há ainda as Brigadas dos Mártires de al-Aqsa ligadas à Fatah, as Brigadas Abu Ali Mustafa que perderam espaço e capacidade militar nas últimas duas décadas e, ainda, a Areen al Usud que se dedica aos ciberataques e à intoxicação através das redes sociais.

Não menos importante é o Hezbollah que a partir do Líbano declarou, em 2006, guerra total contra Israel e que a voltou a confirmar por estes dias.

Este é o cenário dos inimigos mais diretos. Derrotar as Brigadas al-Qassam não é derrotar o Hamas e muito menos derrotar todas as outras forças hostis.

Dado 2

A guerra contra o Hamas tem muitos anos e reforçou-se depois deste grupo político ter ganho as eleições na Faixa de Gaza. O que é muito difícil de entender é o facto de ao longo deste tempo se ter perdido a monitorização permanente da ação da estrutura política e das forças militares do Hamas por parte do Shin Bet, a agência de segurança interna mais relevante e que norteia a Mossad e as Forças de Segurança e Defesa.

Só se pode compreender tal situação com a desmobilização de todas as contexturas centrais do Estado perante um Governo radical e autofágico.

Israel e o Hamas já vão na quinta “guerra” e o grupo armado reergue-se sempre e com novas ambições, conseguindo novas estruturas e mais mártires.

Dado 3

Israel era um dos países do mundo com mais e melhor conhecimento das realidades geopolíticas. Era mesmo, a par do Reino Unido e da China e depois dos Estados Unidos da América, quem dispunha, até há pouco, de mais credenciais na formação e saber dos serviços secretos.

Para além disso, tinha uma estrutura humana de inteligência com enorme capilaridade, uma infraestrutura tecnológica de vigilância inigualável, uma capacidade de interceção de comunicações e de georreferenciação que faziam do país uma fortaleza.

Conhecimento, tecnologia e quadrícula são centrais para a prevenção, são essenciais para a segurança e, muito relevante, para a perceção dessa mesma segurança. Mas não chegou!

Dado 4

Os terroristas entraram no território no dia 7 de outubro. Não se limitaram a um único local, a uma ação rápida e cirúrgica. Eram centenas e a sua ação demorou muitas horas e em vários pontos.

Um desses locais, uma grande concentração de jovens, deveria ter, obrigatoriamente, um plano de segurança, policiais dedicados e atenção aos movimentos. Tudo isso era habitual em Israel como é em qualquer país minimamente organizado e com especiais deveres de proteção.

Acontece que milhares de pessoas foram atacadas, violadas, queimadas e capturadas sem que houvesse o acionar de medidas rápidas, por terra e ar, para limitar a ação, matar os terroristas e impedir que centenas de reféns fossem levados para Gaza.

As centrais de comando mais próximas da fronteira foram atacadas, militares em serviço nessas centrais foram feitos reféns. Inconcebível.

Dado 5

Da circulação de informação classificada dos países ocidentais não parece sobrar qualquer margem de dúvida sobre o objetivo das autoridades políticas de Israel na reação ao 7 de outubro.

Não se trataria só de eliminar a cabeça e os operacionais dos atos bárbaros, até porque ao longo dos anos sempre poderiam ter sido cirurgicamente atacados e a cada tempo decapitada parte da estrutura. A Mossad tem vida longa neste tipo de prática.

A certeza que hoje tem pouca contestação é a de que as forças radicais do Governo de Bibi quiseram utilizar o 7 de outubro para uma anexação da parte norte da Faixa de Gaza.

Tal circunstância morreu em poucos dias por total oposição dos países aliados e por total resistência das forças de defesa e segurança israelitas.

Dado 6

A entrega de armas a israelitas feita pelo ministro fascista das polícias é a prova da ausência de comando do Governo de Benjamin. E fez-se em direto nas televisões.

O centro do poder deixou de estar nos ministros da coligação que sustentou o regresso de Bibi há menos de dois anos, para passar a estar num Conselho de Guerra onde a decisão é por unanimidade e onde participa a oposição. E isso desobrigou e libertou os incendiários ultra.

O poder é frágil e de decisão muito difícil. Não há qualquer folga para uma ação diplomática israelita que leve à troca de reféns judeus por prisioneiros palestinianos, como também não há qualquer solução militar que faça libertar rapidamente os cidadãos dos países ocidentais aprisionados em Gaza. Quanto menos forte é o poder mais dificuldade tem para aceitar soluções diplomáticas.

Dado 7

Tem sido a sociedade civil a promover o apoio substantivo às populações retiradas de suas casas a norte e a sul do território israelita. Esses movimentos são, na sua maioria, anti Bibi. Ao mesmo tempo que levam ajuda vão criando uma força imparável de contestação, fazendo crescer, pela primeira vez em largos setores da sociedade, a vontade de uma solução definitiva.

As autoridades israelitas têm um problema militar em Gaza e têm um outro e grave problema, cada vez mais profundo, na sociedade.

Por outro lado, não tem sido convincente a ação do Governo israelita perante os milhares de reservistas que se disponibilizaram para combater. Não conseguem ver o sentido estratégico, nem os objetivos táticos, nem uma perspetiva temporal para o conflito. Como também não conseguem entender como é que o filho do chefe do Governo se manteve em Miami e não se alistou.

Estão aqui algumas linhas que podem levar a uma outra reflexão sobre o conflito.

Ao longo da minha passagem pelo Parlamento e pelo Governo identifiquei, com maior ou menor clareza, todas estes contextos que aqui vos trago e que estão também na base dos acontecimentos de 7 de outubro. Israel viveu desde a sua independência com uma certa unidade perante os inimigos externos, fossem quais fossem. Mas isso parece ter acabado.

Também na União para o Mediterrâneo, onde estive entre 2015 e 2020, as questões que se prendiam com as fragilidades de Israel começavam a ser motivo de preocupação em núcleos muito específicos. E há ainda a nova realidade da política internacional que faz ligar Netanyahu, Orbán, Trump, Putin e Xi, a frente da pseudodemocracia e do questionamento dos valores liberais, o que leva a uma outra prudência por parte da administração Biden que vai a eleições no final de 2024.

O 7 de outubro de 2023 não foi mais um dos muitos tempos de conflito israelo-palestiniano, não foi só a ignição que levou a mais uma avançada. Foi, essencialmente, a demonstração de que Israel está, é, frágil em setores determinantes para a sua existência.

Sempre rejeitei de forma veemente a teoria do bicho papão judeu. Neste momento confirmo – não há um bicho papão, há um país que carece urgentemente de se sentar para negociar a paz, para permitir a existência de um Estado Palestiniano sustentável, para voltar a garantir a segurança dos seus cidadãos. Israel fortaleza pode ter morrido!

 

Ascenso Simões

 

(Fotos DR)

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