Em Madrid, no verão de 1936, as ruas eram um palco de medo e vingança. Os tiros ecoavam entre os muros das igrejas transformadas em quartéis e as madrugadas cheiravam a pólvora e a denúncia. A Espanha desmoronava-se dentro de si própria, e entre os nomes que surgiam nas listas de “suspeitos” estava o de um homem que apenas sabia escrever. Chamava-se Wenceslao Fernández Flórez, galego de nascimento, cronista fino e humorista de espírito conservador. Fora um dos autores mais lidos da imprensa madrilena, ironizando políticos e burocratas, sempre com a leveza de quem acredita que o riso pode ser uma forma de lucidez. Quando a guerra rebentou, esse humor tornou-se um crime. Acusado de ser “reacionário”, foi preso e condenado à morte.
A história conta que escapou quase por milagre. Uma embaixada estrangeira, talvez a argentina, talvez a holandesa, conseguiu arrancá-lo das mãos das milícias republicanas. Atravessou a fronteira em silêncio, sem olhar para trás, e encontrou refúgio em Portugal, país onde o tempo parecia andar mais devagar e onde o medo não usava uniforme. Em Lisboa, respirou finalmente o ar da sobrevivência. O Tejo tornava-se o seu confidente. Entre a solidão do exílio e a saudade da Galiza, começou a escrever o que seria uma das suas obras mais sombrias, Una isla en el mar rojo, metáfora transparente da Espanha que deixara para trás: uma terra de homens encurralados entre a fé e o ódio, cercados por um mar que já não distinguia o sangue das marés.
Regressou à Galiza depois da guerra, recebido por um regime que o tolerava e que o quis integrar como símbolo da Espanha sobrevivente. Escreveu então El bosque animado, a sua obra-prima, onde o mundo rural se anima de vozes, árvores e almas simples. Era o mesmo humorista, mas já sem riso. A ironia dera lugar à ternura. O homem que escapara da morte em Madrid regressava à infância das florestas galegas como quem regressa à inocência perdida. A guerra deixara-lhe cicatrizes, mas também uma estranha serenidade.
Conservador, sim, mas de um conservadorismo moral, sem fanatismos, sem gritos. Um homem que acreditava mais no equilíbrio do que nas barricadas. Em Lisboa aprendera a medida das palavras e a utilidade do silêncio. Portugal fora a sua travessia interior, a margem onde pôde transformar o medo em literatura.
Morreu em Madrid em 1964, discreto, respeitado, com a mesma ironia melancólica que o salvara. O tempo quase o apagou, mas a sua história continua a merecer ser lembrada. Porque nem todos os exilados trazem medalhas, e nem todos os sobreviventes se tornam heróis. Wenceslao Fernández Flórez foi apenas um homem que usou o humor para resistir à loucura e que encontrou, neste país de fronteiras suaves, o abrigo que a Espanha lhe negara. E talvez por isso, no rumor do Tejo ao entardecer, ainda ecoe o silêncio agradecido de quem um dia escapou à morte para voltar a escrever.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor