O comandante Arnaut

Até porque, salta aos olhos, numa tragédia daquela dimensão, não pode haver só um responsável, e o mais natural é que o Estado esteja enterrado até aos ossos, em responsabilidades escondidas, culpas assombradas e omissões distraídas.

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  • 17:01 | Terça-feira, 31 de Maio de 2022
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No processo que envolve o comandante Arnaut, e que ainda tem a ver com a tragédia de 17 de Junho de 2017, já lá vão 5 anos, irrita-me sobremaneira que o Estado se tenha afastado da sua defesa. Ao fazê-lo, culpou-o sumariamente. E fê-lo, de uma forma fria, com o maior dislate e sem-vergonha.

Tal atitude, não me surpreende, repugna-me. Não me admira, enoja-me. Não me ofende, nauseia-me. Não me indigna, dá-me arrotos.

Até porque, salta aos olhos, numa tragédia daquela dimensão, não pode haver só um responsável, e o mais natural é que o Estado esteja enterrado até aos ossos, em responsabilidades escondidas, culpas assombradas e omissões distraídas.


Acreditar no contrário, é mais inocente do que acreditar no Pai Natal. Triste, é que nem os seus tenha defendido, deixando-os entregues à sua sorte, cada um se atamancando nos patronos que pôde arranjar, pagando-lhes com as suas economias.

Mas acontece que só um, um só, no meio de tantos, roça as calças no banco dos réus, aguardando o veredicto.

O Estado sempre foi forte com os fracos, e submisso com os fortes. Quando está apeado, apanha boleia com quem trava amizades, e depois, já delas não precisando, porta-se como um escorpião, prega-lhe uma ferroada venenosa. É da sua natureza.

No caso vertente, sem Bombeiros, contratualiza com os voluntários o que cabia a ele, e, quando a coisa dá para o torto, ferra-os, e abandona-os.

O Estado foi sempre ingrato, solto dos intestinos e preso da memória. É um empecilho, um mediador de expedientes e um facilitador de conflitos.

Na incapacidade que sempre teve de, por obrigação constitucional, garantir o socorro às populações e a defesa dos seus bens e haveres, entrega essa incumbência aos bombeiros, pagando-lhes trocos pelos serviços prestados. E exige-lhes fazenda da boa em troca de miúdos de frango.

 

 

É assim com os maus pagadores, aliviam a consciência com dez réis de mel coado.

O Estado não presta. O Estado julga que tudo pode e em tudo manda. Tem os instrumentos para isso, e abusa deles. Esquece-se, porém, que não tem Bombeiros, ou os que tem, na hora do aperto, quando os fundilhos das calças se apertam, e se unem num funil, eles não chegam para as encomendas.

Porém, também sabe que os Bombeiros são gente mole, que logo se dá ao alvídio, com uma festa das caricas, uma feijoada com todos e pirolitos frescos, ao toque da caixa de uma fanfarra de nome. E, toldado pelos privilégios que o poder lhe confere, abusa dessa fraqueza.

Podem os comandantes juntar-se e manifestar solidariedade, formar a dois ou fazer alas, sob a torreira do sol ou abrigados da chuva. Gabo-lhes o gesto altruísta.

Mas se o Estado, através do Ministério Público, persistir no pedido de condenação, fá-lo-á, indiferente e alheio a pressões. E o Estado terá, finalmente, um culpado, uma cabeça para mostrar no circo romano, para gáudio dos que, ao som do batuque, se pelam por sangue.

Mas mesmo que o tribunal inocente o comandante de Pedrógão Grande, que é o que desejo, fica sempre a nódoa negra de o Estado se ter prestado ao escusado, esdrúxulo e detestável papel de pedir a sua condenação.

Será que tudo voltará a ser como dantes?

 

(Fotos DR)

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Publicado em Opinião