A Constituição da República Portuguesa é clara: todos os cidadãos são iguais perante a lei (artigo 13.º), todos têm direito à educação em condições de igualdade de oportunidades (artigo 74.º), e o sistema de ensino deve ser universal, gratuito e respeitador da igualdade de acesso (artigo 75.º). Qualquer desvio a estes princípios, sobretudo vindo de uma entidade ligada ao Estado, deve ser objeto de exigente escrutínio democrático. A concessão de um benefício educativo exclusivo — como o pagamento de propinas escolares — por parte de uma empresa então sob controlo estatal, levanta legítimas dúvidas sobre a conformidade com os valores constitucionais e a necessidade de clareza nas práticas institucionais levadas a cabo pela Golden Share estatal liderada por Zeinal Bava em 2011.
Em 2019, numa entrevista ao Correio da Manhã, Ricardo Araújo Pereira afirmou que, no momento em que assinou o contrato com a MEO em 2011, as suas filhas “ainda estavam na primária”. Este dado, aparentemente simples, assume enorme importância para situar o benefício concedido — o pagamento das propinas das suas filhas — no primeiro contrato, celebrado em 2011, e não num acordo posterior. Em 2015, ano em que foi celebrado um segundo contrato apenas com ele, excluindo os restantes membros dos “Gato Fedorento”, as suas filhas já estavam longe da primária, frequentando o 3.º ciclo do ensino básico (7.º e 9.º anos de escolaridade), o que afasta a hipótese de o benefício estar relacionado com esse segundo vínculo.
Este contrato entre o humorista e a MEO, uma empresa que até 2011 esteve sob influência direta ou indireta do Estado, através da chamada “golden share” — que dava ao Estado poder de veto sobre decisões estratégicas — nunca foi devidamente explicado publicamente. É fundamental que este contrato seja submetido a um escrutínio rigoroso por parte da sociedade, pois envolve recursos de uma empresa onde o Estado ainda mantinha controlo e, aparentemente, benefícios de educação privilegiada a uma família concreta.
Esta circunstância, longe de ser um pormenor, é um convite claro à transparência. As práticas e condições destes contratos devem ser sujeitas a exame público, tendo em conta, na altura, a estreita relação entre a MEO, a Portugal Telecom e o Estado português, liderados pelo CEO Zeinal Bava e José Sócrates respetivamente.
Quando uma empresa sob controlo público concede benefícios particulares — como o pagamento de propinas escolares — essa decisão não pode escapar ao crivo da opinião pública. Está em causa a confiança dos cidadãos nas instituições e a garantia de que o Estado e os seus satélites respeitam os princípios constitucionais que regem a vida coletiva.
Este caso não deve ser minimizado nem relativizado com argumentos empresariais ou privados. Trata-se de um sinal claro da necessidade de clarificação pública. Importa garantir que os interesses particulares não se sobrepõem à ética, à legalidade nem ao bem comum.
Este episódio deve servir de alerta ao Estado, às empresas públicas ou controladas e à sociedade em geral. A democracia exige vigilância, e o respeito pelos princípios constitucionais — igualdade, transparência e justiça — não pode ser posto em causa, seja por omissão, seja por conveniência.
Mais do que isso: este contrato coincidiu com o fim do programa televisivo dos “Gato Fedorento” em horário nobre na SIC, espaço onde exercia crítica humorística incisiva, nomeadamente ao então Primeiro-Ministro José Sócrates. A retirada dessa voz crítica do espaço público, num momento de forte contestação cívica e suspeitas sobre a governação, deve também ser ponderada no quadro mais vasto de condicionamento indireto da liberdade de expressão e da autonomia do comentário político disfarçado de entretenimento.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor