Meditação sobre a natureza dos plantígrados

Apaziguei a irritação começando a segunda leitura das memórias de Aquilino Ribeiro. Tão bem o fiz e com tanta gratidão segui a adolescência do escritor em Viseu, sobretudo a pesca dos gambozinos e o par de estalos num padreco insolente, que só ao fim de dez páginas me apercebi de que estava a ler com os óculos errados. Quando larguei os aviões, já Aquilino fora expulso do seminário de Beja e se preparava para encarar Lisboa, lutar pela república, ser preso, fugir para Paris e começar uma ditosa carreira literária.

  • 10:23 | Quinta-feira, 19 de Agosto de 2021
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Esta nota começa na lojinha do aeroporto de Hong Kong, onde uma senhora me quer convencer de que os auriculares, que se apagam a cada oscilação do telemóvel e emitem os ruídos que antigamente acompanhavam a sintonização das telefonias, está em bom estado. Lutei bravamente contra esta opinião e ainda mais para reaver os vinte e seis euros, presos num problema de câmbios e moedas. Assim se robustece um homem que tem de esperar quatro horas, voar onze, esperar outras cinco e voar mais três.

Apaziguei a irritação começando a segunda leitura das memórias de Aquilino Ribeiro. Tão bem o fiz e com tanta gratidão segui a adolescência do escritor em Viseu, sobretudo a pesca dos gambozinos e o par de estalos num padreco insolente, que só ao fim de dez páginas me apercebi de que estava a ler com os óculos errados. Quando larguei os aviões, já Aquilino fora expulso do seminário de Beja e se preparava para encarar Lisboa, lutar pela república, ser preso, fugir para Paris e começar uma ditosa carreira literária.

Encontrei numa das páginas de Aquilino Ribeiro a palavra plantígrado, invulgar mas muito própria para classificar uma das mais singulares meditações realizadas em Macau. É surpreendente a constância com que homens e mulheres pretendem caminhar pousando os pés de uma vez no chão. Esse intuito, ditado por algum motivo cultural que desconheço, leva-os a um equilíbrio singular. Sem poderem fincar orgulhosamente os calcanhares, vêem-se obrigados a pequenos passos, produzidos com uma ligeira flexão dos joelhos e o tronco tombado dez graus à frente. Os braços acodem num meneio próprio, que me parece sacudido, abandonado, indiferente à concatenação das pernas. Desta complexidade mecânica, aquilo que melhor se retém é o som produzido pelo arrastamento dos pés, sobretudo quando usam chinelos, e a impossibilidade de obterem passos longos e rápidos. A pressa desmancha-se num esforço inglório. A rapidez dos passos reduz a sua extensão e provoca sucessivas síncopes das biqueiras no chão.

A leitura amena das memórias de Aquilino Ribeiro não me impediu de verificar que emprega duas vezes o vocábulo plantígrado. Em Macau, também encontrei dois motivos para falar dos passos. Já mencionei o primeiro. O segundo revelou-se com mais demora e subtileza. Não me refiro aos passos da multidão contida nos passeios estreitos do centro histórico, nem aos que se vêem por estarmos a admirar a calçada portuguesa. Para explicar, basta-me repetir o processo de apreensão realizado, longe das ruínas de São Paulo, na nova avenida dos casinos.


Quando se chega aos grandes átrios cheios de cor, de música e de gente, somos levados a caminhar para chegar ao quarto e ir dele para o salão dos pequenos-almoços. Interessados no rodopio, ainda que desconfiados por aquela alegria conduzir directamente aos jogos de azar, vamos procurar os outros hotéis temáticos. Sorrimos com as gôndolas fechadas em canais de brincar. Apreciamos a réplica da Torre Eiffel. Vagueamos pelos milhares de lojas que formam corredores infindos. Ao fim de três dias, continuamos a caminhar, mesmo que seja para desdenhar do kitsch e fotografar aqueles espaços que, na escuridão, resplandecem com milhões de luzes coloridas.

 

 

Uma noite, calhou empreender, com a Eugénia, um itinerário mais demorado que nos levou de corredor em corredor, de praça em praça, de escadaria em escadaria. A fadiga coincidiu com as onze da noite, quando as lojas fecham e os clientes regressam aos quartos ou entram nos casinos. Os espaços, esvaziados, ficam megalómanos e assombrados. E foi então que percebemos a total ausência de bancos. Aquela arquitectura ingente não admite que nos sentemos. Não nos quer parados. Quer-nos andarilhos amaldiçoados num mundo de passos perdidos.

O repouso só nos foi dado no exterior, uma hora depois, defronte da Torre Eiffel, num banquinho corrido, tranquilos, perante os surtos de música e as variações de luz. Ali ficámos. No passeio que acompanha a avenida, os caminhantes, em passos lentos, faziam uso da sua natureza plantígrada, uns cravando os calcanhares, outros poisando os pés sem fragor; uns parecendo dominar o chão por onde passam, outros preferindo deslizar nele sem lhe tocar; uns ameaçando parar a cada passo, outros parecendo tocados pela inércia de um movimento perpétuo.

(Fotografias de Maria Eugénia Pereira e Nuno Rosmaninho.)

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Publicado em Opinião