Era um par de olhos azuis sff

E caio sempre no mesmo fosso absoluto do país chamado Portugal onde os que podem e os que obedecem estão separados por séculos, línguas diferentes e mundos paralelos que nunca – por nunca ser - se tocam, tornando assim impossível perceber que mundo é esse onde se movimentam os miseráveis.

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  • 18:23 | Terça-feira, 08 de Setembro de 2020
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Fico calada a ver o mundo deste lado da janela.

Invariavelmente os homens olham em frente, enfadados enquanto caminham e elas matraqueiam o ar com torrentes intermináveis de conversas que eles não ouvem. É quando os casamentos se tornam neste penadoiro que devia ser proibido estar naquele triste estado.

Depois as crianças. Puxam a mão, pedem este mundo e o outro. As mães perdem a cabeça e gritam, ou dão um safanão no pequeno terrorista, a fila inteira do supermercado a olhar com ar de tss tss, és uma Mãe falhada e não sabes, ou sabes, mas não queres saber.


Depois no café, as empregadas que teimam em virar costas e uma pessoa que desespera por um café e elas a ignorarem-nos olimpicamente, tudo é mais importante que o cliente, depois eu a lembrar-me de gente que é tratada abaixo de cão pelo patronato, que acha que faz a misericórdia divina de “dar” emprego a uns miseráveis sem o quais o seu negócio não existiria e eu sem saber como teria brio para atender clientes se me levantasse às 6 da matina para ir esmolar 565 euros depois de centenas de bicas aviadas e talvez não tivesse vontade de me virar para a cliente que também era eu.

E caio sempre no mesmo fosso absoluto do país chamado Portugal onde os que podem e os que obedecem estão separados por séculos, línguas diferentes e mundos paralelos que nunca – por nunca ser – se tocam, tornando assim impossível perceber que mundo é esse onde se movimentam os miseráveis.

Pergunto ao novo mendigo da rua como se chama e ele abana muitas vezes a cabeça, mas os olhos sorridentes e azuis parecem os de um homem contente.

E queria muito ver os sorrisos dos que estão na bolha privilegiada, depois de dias passados a aviar bicas sem a maior ou menor esperança de passar da cepa torta, não há emprego, a escola foi difícil, o país não ajudou, mas temos de expiar o crime de ter vivido acima das possibilidades – ir ao dentista particular que nos centros de saúde não há – e comprar um simulacro de brinquedo no Natal e no aniversário dos terroristas, mas porque me olha a senhora que escreve nos jornais assim quando lhe ponho a bica no balcão, querem ver que é da ASAE, ou então conhece o meu pai que pede esmola lá no cimo da avenida, só sei que me doem as costas e as mãos não aguentam mais tanto detergente barato e os jornais são tão bons para puxar lustro aos vidros mas agora estão muito caros e tem de ser com um pano nunca fica tão bem, mas não faz mal que a patroa só vem ao café já escuro fazer a caixa e já não se vê, se um dia vir sei que vai gritar e dizer que não presto e se calhar tem razão, não presto para ser empregada dela embora isso não me adiante nada, já é tão tarde e amanhã às 6 da matina é outra vez dia de me levantar onde andará o maluco do meu pai que não se lembra do nome e traz os bolsos cheios de bolas de papel que lhe dão porque não sabe contar moedas e gostam de o ver sorrir apesar de ele ser gente e pobre, mas com uns lindos olhos azuis?

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