Decálogo para se entenderem as interconexões energéticas

O executivo francês aclarou, em várias circunstâncias, que a ligação no Golfo da Biscaia e as duas interligações elétricas, previstas no acordo de 2015, nunca estiveram em causa, mas recusou sempre a construção da rede de transporte de gás através dos Pirinéus. Uma negociação entre os governos não permite comportamentos ameninados, obriga a uma ponderação dos interesses dos três Estados.

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  • 21:07 | Quinta-feira, 27 de Outubro de 2022
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Nos últimos dias, depois do acordo entre França, Espanha e Portugal, sobre a criação de uma ligação que permita fazer circular gás natural e gases renováveis entre Espanha e França a partir de Portugal, iniciou-se uma campanha dura a que Paulo Rangel apelidou de – ir de “cavalo para burro”. Não adivinhámos quem seria o cavalo e quem seria o burro, mas também não nos interessou.

Este é um dos temas em que a luta política deveria assentar mais na ponderação e razoabilidade do que num certo niilismo que é cada vez mais comum. Rangel a falar de energia é o mesmo que pedir a Duarte Cordeiro para falar sobre física quântica, mesmo que Cordeiro seja especialmente dotado.

Mas vamos ao que interessa, em dez pontos que possam ser entendíveis por todos.

1. A União Europeia tem um grave problema de soberania energética. Durante muitos anos assentou a sua política numa visão despreocupada em que as renováveis assumiriam o papel central, garantindo-se, até lá, que os países produtores de petróleo e de gás natural mantinham uma relação normal de fornecimento.


A invasão da Ucrânia demonstrou o quão errada estava essa política sem rede. O corte significativo do abastecimento, por parte da Rússia, demonstrou que nada está garantido, que vivemos num espaço cheio de fragilidades.

2. Portugal, apesar das suas políticas acertadas que tiveram início com Carlos Pimenta, foram fortalecidas pela ação de José Sócrates e ampliadas, nos últimos anos, pelo vigor de Matos Fernandes, Duarte Cordeiro e João Galamba, tem necessidades de fornecimento muito significativas, terá sempre, porque o mix energético carecerá perduravelmente de uma visão de conjunto.

A soberania energética portuguesa está hoje melhor do que estava há uma década, mas ainda longe dos padrões ponderados internacionalmente.

3. Para além da soberania energética há o problema da segurança energética. Esta assenta no fornecimento e nas redes. A Europa tem esse problema em dois campos – nas redes de eletricidade e nas redes de gás. Ora, quando olhamos para a negociação que tem vindo a ser desenvolvida, desde 2014, que pretende ligar Espanha e Portugal a França, só nos devemos obrigar a um avançar mais rápido e sem divergências partidárias internas.

Por isso, as interligações elétricas continuam previstas e devem, perante a crise que vivemos, acelerar; as interligações para o gás, natural e renováveis, devem avançar ainda mais velozmente.

4. Quem conhece a circunstância energética francesa, pela realidade das políticas estaduais e das próprias empresas, somadas à estrutura de produção, adivinharia a dificuldade de qualquer negociação. França continua a ser uma barreira entre a Ibéria e o resto da Europa e isso impõe capacidade diplomática para fazer avançar os projetos.

O executivo francês aclarou, em várias circunstâncias, que a ligação no Golfo da Biscaia e as duas interligações elétricas, previstas no acordo de 2015, nunca estiveram em causa, mas recusou, sempre, a construção da rede de transporte de gás através dos Pirenéus. Uma negociação entre os governos não permite comportamentos ameninados, obriga a uma ponderação dos interesses dos três Estados.

5. O acordo deixou para trás os Pirenéus e avança agora pelo Mediterrâneo através de uma ligação submersa. Não está ainda determinado o valor geral da obra, mas há duas novidades que importa ter presente – resolve-se um problema que se vem arrastando há muito tempo e abre-se o caminho para que os gases renováveis  e o hidrogénio possam circular nessa nova rede.

Alguns eletrotécnicos aparecem a dizer algozarias sobre as “moléculas” do hidrogénio. Outros aparecem porque interessados em continuar a desenvolver eólica e solar com rendas garantidas. E há os eternos defensores do nuclear que nunca cessam de estar contra tudo até conseguirem o seu investimento.

6. A discussão atravessa, igualmente, as opções europeias sobre o que se considera ser energia verde. A decisão de reintroduzir o nuclear e o gás natural no grupo dessas opções para as próximas décadas, deixou parte dos interesses e parte dos ambientalistas desassossegados.

Há muito que há um problema grave com o gás natural. Parece filho rejeitado de uma parte dos políticos e dos reguladores. O gás natural é de origem fóssil, mas é o mais “amigo” do ambiente que pode existir nesse universo e neste momento. O gás natural é essencial para a transição, para a segurança e para a soberania. Ninguém pense que se pode fazer qualquer caminho de descarbonização sem a sua presença nos mix energéticos.

7. Portugal não pode apostar só numa única rede de distribuição de energia. A rede de eletricidade deve ser a matriz central, mas uma rede de gás, bem dimensionada, bem gerida, bem preparada para o futuro, não pode deixar de existir.

Talvez os portugueses nunca tenham pensado no erro que seria se só dependêssemos da eletricidade e se fossemos devastados por fenómenos climatéricos graves em dias sucessivos, se um terramoto atingisse metade do nosso território. Nos Estados Unidos da América, terra onde o clima não é amigo do homem, as redes de gás são a solução imediata para repor a energia a empresas e famílias. É por isso que uma rede de gás, que estruture o país, é central. E mais, as redes de abastecimento através de pipeline virtual são ainda mais seguras.  

8. Não se compreende bem, portanto, a posição do Regulador da Energia quando desmerece na necessidade da valorização das redes de gás. Elas têm vindo a transportar gás natural, assumem hoje uma realidade económica que deve ser ponderada, mas nunca esquecer que nessas redes podem ser incorporados, já, 15% do hidrogénio, que pode passar o biometano que se está a começar a produzir, que elas, as redes, serão uma infraestrutura central para o futuro.

Não podem todos os países do centro, norte e leste europeu assentar a sua política energética dual também no gás e Portugal ser, como foi ao longo de quatro séculos, o país que não queria nada com a Europa.

9.  Há quem conteste os custos de tudo isto. Pergunte-se, então, quanto custará o gasoduto anfíbio que ligará Barcelona a Marselha. Podem sempre ter uma estimativa –Espanha tem dois gasodutos ligados ao seu território que trazem gás do norte de África e não houve uma só voz que, na altura (nem hoje), questionasse esses investimentos.

E há, também, quem questione os valores da ligação interna entre Celorico da Beira e a fronteira de Salamanca/Zamora. São trezentos milhões de euros que garantirão o futuro, que não nos deixarão dependentes unicamente das ligações atuais. Se quisermos ter uma medida para o custo, basta ter presente que os apoios diretos às empresas, perante a crise que se vive, são dez vezes superiores.

10. O que importa ter presente por estes tempos? Há barbantes bem claros – eletricidade e gás renováveis com produção nacional; capacidade de exportar e importar energia que resolva os problemas de abastecimento; investimento em redes criteriosos que melhorem o transporte e a distribuição de eletricidade e de gás; capacidade para, olhando para a economia circular, podermos produzir gases renováveis com dimensão significativa no mercado interno; acelerar os investimentos no hidrogénio para todos as aplicações possíveis, incluindo a introdução nas redes.

Talvez possamos ter feito luz sobre o que está em causa. Talvez possamos equilibrar os interesses privados em presença e acertar cada um deles com as obrigações públicas. Mas é danoso, para o país, um qualquer bloqueio que atrase a modernização dos nossos sistemas energéticos. Para atrasos já nos bastam os do aeroporto e do TGV.

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