Entre Luanda, Salvador da Baía, Lisboa e Mindelo estende-se uma geografia feita de oceanos, partidas e regressos. O século XVI transformou essa ligação em comércio atlântico, com a escravatura portuguesa organizada a partir dos portos de Luanda e Benguela. Milhões de africanos foram embarcados rumo ao Brasil e, com eles, saberes, ritmos e gestos. Dessa violência nasceu uma herança cultural reconhecível no semba de Angola, no samba do Brasil, na capoeira da Baía e na morna de Cabo Verde, em diálogo com o fado de Lisboa.
O n’golo, conhecido como “dança da zebra”, subsiste no sul de Angola. Jogo de acrobacias, chutes e esquivas, praticado em roda com palmas e canto, guarda semelhanças evidentes com a capoeira. Em Salvador da Baía, os africanos escravizados desenvolveram essa luta disfarçada de dança, preservando a lógica de roda herdada de Angola. Já em 1780, o viajante inglês Henry Koster descrevia no Brasil “um divertimento de negros, meio dança, meio combate, com saltos e fintas”, antepassado evidente da capoeira.
A morna de Cabo Verde acrescenta outra vertente dessa herança atlântica. Cadência lenta, poesia melancólica e música de saudade ligam-na ao fado português. O padre André Álvares de Almada, cabo-verdiano do século XVI, já notava que nas ilhas “as mulheres cantavam em lamentos doces e graves os males da ausência”. O fado, nas vielas de Lisboa, tornou-se voz de destino e fatalismo. A morna, nas ilhas atlânticas, canta a distância do emigrante, o amor perdido, a memória da ilha. Cesária Évora e Amália Rodrigues, cada uma à sua maneira, deram corpo ao mesmo idioma do sentimento.
O funaná cabo-verdiano mostra outra face. O acordeão europeu cruzou-se com o batuque africano e criou um ritmo vibrante. Durante anos marginalizado pelo regime colonial, transformou-se depois em símbolo de liberdade e afirmação cultural. Se a morna olha para dentro, o funaná chama ao corpo e à dança, lembrando que a lusofonia não é apenas saudade, mas também pulsação africana. O cronista Valentim Fernandes, no início do século XVI, já se admirava com “os tambores das ilhas”, marcando o compasso de danças noturnas.
Celebrar estas músicas e danças significa reconhecer a sua beleza, mas também a sua origem. Portugal foi ator central do sistema que arrancou milhões de pessoas ao continente africano. Hoje, quando o semba encontra o samba, quando a morna ecoa no fado, quando o funaná chama ao batuque, percebe-se que a lusofonia não se limita a uma língua comum. Representa memória de sofrimento e, ao mesmo tempo, património vivo de resistência e invenção.
A ironia está no facto de o fado ter sido elevado a património mundial pela UNESCO e colocado no centro da identidade nacional, enquanto a morna e o funaná continuam a ser vistos como expressões periféricas, quase exóticas, apesar de também pertencerem a essa mesma história atlântica que moldou Portugal. Talvez a verdadeira medida da lusofonia passe por reconhecer, sem hierarquias, que a saudade de Lisboa não é mais universal do que a de Mindelo, nem a melancolia das vielas mais legítima do que o batuque de Santiago.
imagem: pintura realizada por Johann Moritz Rugendas por volta de 1835, que retrata uma cena de capoeira ou dança-luta em Salvador, no Brasil . Rugendas (1802–1858) foi um importante artista e viajante europeu que documentou, com desenhos e pinturas, cenas do Brasil colônia, incluindo manifestações culturais como o que parece ser capoeira ou danças afro-brasileira.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor