Beatriz Pinheiro nos 99 anos do seu falecimento

Com a argumentação de que não havia «ruas disponíveis» - para as novas avenidas entretanto rasgadas, o topónimo de uma mulher seria humilhante – Beatriz Pinheiro será somente uma placa minúscula num arruamento por onde quase ninguém passa. A cidade, querendo honrá-la, esqueceu-a outra vez, sem nunca a ter querido conhecer.

  • 11:41 | Quarta-feira, 13 de Outubro de 2021
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Viseu, 29 de Outubro de 1871 / Lisboa, 14 de Outubro de 1922

Outubro parece ter sido o inefável mês de Beatriz Pinheiro, pautado por três dos momentos fundamentais da sua vida: nascimento, casamento e morte.

 


 

A 29 de Outubro de 1871, Beatriz nascia em Viseu, na rua Nossa Senhora da Piedade, embalada pelo repicar dos sinos da catedral, ali tão perto, onde foi baptizada a 9 de Novembro. 25 anos depois, nas paredes da vetusta igreja troavam os acordes da marcha nupcial. Era o dia 8 de Outubro de 1896. Beatriz casava-se com António Cardoso de Lemos, o poeta que publicava sob o pseudónimo Carlos de Lemos. E passados outros 25 anos, desta vez em Lisboa, na freguesia da Sé, Beatriz despedia-se da vida. A 14 de Outubro de 1922, quinze dias antes de cumprir os 51 anos, fechava os olhos para sempre aquela que, ao lutar pela dignificação da mulher, defendia denodadamente o direito à educação, à instrução e ao trabalho dignamente remunerado. O corpo da feminista que, na revista Ave Azul escrevia: “É nisto – em libertar, em independentar pelo trabalho (que) se resume afinal todo o feminismo bem entendido e sensatamente esclarecido. Uma questão de pão e uma questão de dignidade”, passava a repousar numa sepultura esquecida no cemitério oriental lisboeta. E, paradoxalmente, ou não, na certidão de óbito da mulher que foi professora e escritora constava que era doméstica, alguém que nunca transpusera a soleira do lar, dedicando-se exclusivamente ao cuidado dos filhos e do marido.

 

 

Tamanha injustiça para quem tão desassombradamente pugnou por um modelo de co-educação, com rapazes e raparigas a frequentarem as mesmas escolas e sujeitos aos mesmos currículos.

Tamanha injustiça para quem começou a docência na cidade que a viu nascer e onde fundou a Escola Liberal de João de Deus, destinada à educação de raparigas pobres (1901-1909) e foi a responsável pela introdução do projecto das Escolas Móveis pelo Método de João de Deus (1907). Já em Lisboa, foi professora no Liceu Feminino Maria Pia onde, em 1916, proferiu a célebre conferência A mulher Portuguesa e a Guerra Europeia, em que defendia a participação de Portugal no teatro de guerra dos campos da Flandres, bem em linha com a posição do partido em que militava: o Partido Democrático de Afonso Costa.

Tamanha injustiça para a escritora que deixou inúmeros artigos espalhados por jornais e revistas, desde a revista académica Mocidade, a primeira onde publicou, passando por A Beira, Nova Aurora, Almanaque de Senhoras, A Crónica, Alma Feminina, O Garcia de Resende. E não se pode obnubilar, o papel cimeiro – articulista, romancista, poetisa, co-directora – desempenhado na revista Ave Azul que, durante dois anos (1899-1900) foi dado à estampa em Viseu e daqui distribuído por todo o país.

 

 

Tamanha injustiça para a pacifista que, se torna, em 1899, correspondente viseense da Liga Portuguesa da Paz.

Tamanha injustiça para a republicana feminista que pertenceu ao Grupo Português de Estudos Femininos, à Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e à Associação de Propaganda Feminista, que lutou pela aprovação da Lei do Divórcio e fez parte da Comissão portuguesa, juntamente com Ana Augusta de Castilho, Ana de Castro Osório, Luthgarda de Caires, Joana de Almeida Nogueira e Maria Veleda, que, em 1913, esteve presente no 7º Congresso Internacional «Women Suffrage Alliance», realizado em Budapeste.

Mas Beatriz morreu em 1922, quando a luta pelos direitos das mulheres apenas começara, enfrentando um milenar modelo patriarcal, do qual os republicanos não estavam isentos, bem pelo contrário. Basta recordar a saga da médica Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a votar em Portugal. Com medo de que as mulheres caíssem nas garras dos padres católicos e fossem influenciadas nas urnas contra a República, o paternalismo político retirou-lhes a possibilidade de participarem em qualquer sufrágio eleitoral. Depois de Carolina Beatriz Ângelo, o voto feminino, aquele que não excluía qualquer uma, só foi possível com a Revolução de Abril de 1974.

Se no acento de óbito desaparece grande parte da mulher que Beatriz Pinheiro foi, na cidade que a viu nascer não é lembrada, apesar de, seis meses após a sua morte, em sessão ordinária da Câmara Municipal, ter sido aprovada, por unanimidade, a proposta do seu nome ser gravado na toponímia viseense. Foi contudo preciso esperar quase um século para, por iniciativa do Bloco de Esquerda, a 29 de Junho de 2020, a Assembleia de Freguesia de Viseu, decidir, outra vez por unanimidade, atribuir o nome «Beatriz Pinheiro» a um sombrio arruamento da cidade, torneando um bairro que recorda uma outra viseense, Maria do Céu Mendes.

Com a argumentação de que não havia «ruas disponíveis» – para as novas avenidas entretanto rasgadas, o topónimo de uma mulher seria humilhante – Beatriz Pinheiro será somente uma placa minúscula num arruamento por onde quase ninguém passa. A cidade, querendo honrá-la, esqueceu-a outra vez, sem nunca a ter querido conhecer.

 

 

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