Aquilino e as “Arcas Encoiradas”

Pena é que que as gerações actuais, em regra, perdido tenham o gosto e a arte de ler. Que os autarcas das terras que homenageia o esqueçam, honra às autarquias de Sernancelhe, Moimenta da Beira, Vila Nova de Paiva e Paredes de Coura, que não desistem e porfiam com a Bertrand nas reedições da sua obra, exemplos que bem poderiam ser seguidos por Viseu e por Lamego...

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  • 11:25 | Sexta-feira, 24 de Março de 2023
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Estudos, opiniões e fantasias, assim designa Aquilino conteúdo de “Arcas Encoiradas” que viu prelo em 1953. Nele “Arejam-se as velharias das arcas encoiradas para que não lhes pegue a traça nem o mofo.”

 


Esta obra é composta de dezassete capítulos. Nela nos fala variadamente e com finíssimo acerto de orcas e dólmens, das necrópoles e do culto dos mortos, das orcas e da silogística da imortalidade, da casa comunal do fogo, das alpoldras do tempo, das perdizes, de Eça de Queirós, do mel e das abelhas, da psicologia do beirão, do despovoamento do território, da arte, da casa beiroa, das danças, das castanhas, das estradas, de Viseu, de Almeida Moreira, do bispo Alves Martins, da necessidade de construir uma circular em Viseu, de Lamego, da festa dos Remédios, do museu de Lamego, do Colégio Roseira, do Porto, de Camilo, dos tripeiros, de Lisboa, da torre de Belém, de Santa Cruz de Coimbra, dos mestres do ferro, de Arnaldo Malho, de Almeida e Silva, de Espanha e de Portugal, de Unamuno, dos três tipos de mulher, do “vom binho berde”, do Alto Minho, de Paredes de Coura, do senhor de Romarigães…

Assim, fluente, vai de Norte a Sul e, como um arguto caricaturista, um hábil pintor de homens e paisagens, um historiador notável, desencanta e revive, aqui e ali, gentes ilustres e aldeões anónimos, tradições d’antanho e visões futuristas para o desenvolvimento, das estradas, da agricultura, da hidrografia, da fauna e da flora… o todo, num rasgar de aparo crítico e envolto na acutilante e sagaz ironia de sempre.

Pena é que que as gerações actuais, em regra, perdido tenham o gosto e a arte de ler. Que os autarcas das terras que homenageia o esqueçam, honra às autarquias de Sernancelhe, Moimenta da Beira, Vila Nova de Paiva e Paredes de Coura, que não desistem e porfiam com a Bertrand nas reedições da sua obra, exemplos que bem poderiam ser seguidos por Viseu e por Lamego…

Deixo aqui, com a devida vénia, um extracto no qual Aquilino nos fala de dois rios das suas Terras do Demo, o Paiva e o Távora. Talvez aguce o desejo de ler o livro ao leitor moderno e de nele ter o ensejo de se deliciar com a variedade e qualidade da escrita do Mestre do Carregal, de Soutosa, dos Alhais, de Paredes de Coura, de Portugal…

 

“… o Távora e o Paiva. Nascem vizinhos, um a deslado de Trancoso, lá para Venda do Cepo, o outro na serra da Nave, acima da aldeia de Ariz, e a certa altura do curso separam-nos apenas as duas léguas da serra da Lapa. A breve trecho, porém, mal tomam fôlego, voltam-se as costas. O Távora marcha desembaraçadamente para o Norte, o Paiva para o Ocidente, a lançarem-se no Douro, seu suserano, o segundo deles cansado – reza o Mapa de Portugal – das boas doze léguas andadas.

Ambos filhos do planalto, arranjam. No desenrolar do estuário, fácies próprio, bem diferente. O Paiva é uma ribeira essencialmente serrana e assim perdura até a foz. As terras que vai costeando são de cultura centeeira ou corgas de milho, e a população ribeirinha mantém um carácter impertérrito como o granito dos montes. As águas do rio são claras, batidas nos cachopos, alimentadas hora a hora pelas fontes que saem dos terrenos marginais coleando como cobrinhas ágeis. Por isso o seu povoador de excelência é a truta. É notável a produtividade do Paiva em tais salmonídeos, e desde sempre que não há peita melhor como processo entre serranos de paliar aos seus problemas, desde os mais cacaracás até ao da morte de homem.

O Távora é outra música. A meio da jornada, depois de passar Vila da Ponte, roçar o Freixinho, não topa às duas bandas outras terras que não sejam vinhedos de vinho fino. A gente é mais polida que para a serra. Em contacto com os senhores ingleses e os fidalgos que moram para Lisboa e têm ali as suas quintas, onde nas cavas pagam um ordenado de fome, sabe cumprimentar e dar o seu recado. Nas águas do rio, também, à truta substituem-se a boga e o bordalo. Dado o seu fundo de lama e xisto, como no Vouga, o meio não lhe é favorável.

Estes dois rios, tão diversos no ambiente, tornar-se-ão com o seu aproveitamento as veias arteriais da região. Até desaguarem no Douro fartam-se de descer, pular ressaltos, costear barrocais, atravessar vales anfractuosos, erguer catadupas, uma riqueza em potência.”

Ribeiro, Aquilino. “Arcas Encoiradas”, 1953

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Publicado em Opinião