A revolução poética da “Bela Velhice”

Urge quebrar o silêncio! Rompamos a conspiração do silêncio! Não podemos continuar, como a avestruz, a enfiar a cabeça na areia e a ignorar a desumanização que a sociedade reserva para os velhos que são ignorados, desprezados, estigmatizados, abandonados.

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  • 7:47 | Segunda-feira, 04 de Abril de 2022
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Mirian Goldenberg, uma das maiores estudiosas do envelhecimento no Brasil, alerta-nos para o aumento do preconceito contra os velhos: VELHOFOBIA. Utiliza o termo “velho” porque acredita ser possível mudar a visão estereotipada, estigmatizada e preconceituosa que a palavra, habitualmente, encerra.

Tomei uma decisão, vou passar a usar a palavra “VELHO” para me referir aos velhos. Vou abandonar os sinónimos senior, maior, idoso (…) Com a publicação do artigo “Velhos: atados, sedados, desnutridos, sujos” dei o tiro de partida, segui o conselho da Mirian, carreguei no botão do “foda-se” (Sugiro a leitura do seu livro Liberdade, Felicidade e… Que se Foda!), segui em frente e tornei-me um militante pela Revolução da Bela Velhice e contra a velhofobia, o etarismo, o idadismo. Uma Revolução que já tem um excelente manual de instruções que define uma possível estratégia para “A Invenção de uma Bela Velhice.”

No seu mais recente livro, a antropóloga e investigadora, com base em pesquisas com milhares de pessoas, dá preciosas sugestões para a conquista de uma bela velhice: ter um projeto de vida (o seu projeto de vida, não aquele que os outros lhe possam sugerir / impor); aprender a dizer não; valorizar as amizades; viver todos os dias em plenitude, respeitar as suas vontades e desejos.

A autora traça um novo perfil da mulher que deixa de ter medo de envelhecer, liberta-se e contribui para a densificação do movimento que combate, sem tréguas, os estereótipos e o estigma que caraterizam o envelhecimento feminino. Muitas mulheres estão a desafiar o padrão cultural vigente, do culto da juventude, e assumem uma nova maneira de se posicionarem no mundo, a partir da força das suas opções.


Estas mulheres clicam no “botão do foda-se” e libertam-se das amarras idadistas e sexistas.  Tornam-se, efetivamente, elas próprias, vivem as suas vidas com uma liberdade, que, até então, lhes parecia inacessível, proporcionando-lhes a desejada felicidade e uma bela velhice. Vivenciam os momentos mais felizes das suas vidas, porque nunca se sentiram tão livres.

Ao longo do livro, com forte enfoque no público feminino, são traçados alguns caminhos possíveis para que as mulheres vivenciem a terceira idade com menos sofrimento, culpas, cobranças excessivas ou comparações. Todos envelhecemos, tal não significa reformarmo-nos de nós próprios. Tenhamos projetos de vida, não deixemos que nos coloquem rótulos ou etiquetas, unamo-nos em prol da revolução e invenção de um novo modo de envelhecer. Está em curso uma revolução comportamental e simbólica dos mais velhos, talvez a mais importante do século XXI. “Uma das descobertas mais instigantes da minha atual pesquisa é a diferença entre o discurso feminino e o masculino sobre o processo de envelhecimento.”

Sem dúvida, um dos tópicos mais interessantes do livro é a constatação da diferença no envelhecimento de homens e mulheres. “As diferenças entre homens e mulheres adquirem um novo significado na velhice.” As mulheres passam a valorizar mais as amizades, sentem-se mais livres e felizes por poderem “ser elas mesmas”. A autora chama a atenção para as “velhices”, há distintos caminhos e escolhas de vida para envelhecer bem.  Constata também a existência de uma certa ambiguidade nas representações atuais sobre o processo de envelhecimento: medos, perdas e doenças / beleza, liberdade e felicidade. Elenca três tipos de discurso sobre a velhice: “velhofobia”, “velhoeuforia”, “velhoalforria”.

Importa sublinhar que a Bela Velhice não está ao alcance apenas dos mais privilegiados, ela resulta de um “belo projeto de vida”, de quem envelhece livremente sem as amarras das tradicionais convenções sociais. “Também somos ou seremos velhos, poderemos ajudar a derrubar os medos, os estereótipos e os preconceitos existentes sobre a velhice.” Juntos, seremos mais fortes para retirar os velhos da invisibilidade social, combater os preconceitos, denunciar e condenar a violência e o sofrimento a que muitas pessoas são sujeitas. “Somos nós os principais interessados em uma transformação radical dessa realidade, seja qual for a nossa idade cronológica. Cada um de nós, mesmo os muito jovens, deveria se reconhecer no velho que é hoje ou no velho que será amanhã: velho não é o outro, velho sou eu.”

 

 

Urge quebrar o silêncio! Rompamos a conspiração do silêncio! Não podemos continuar, como a avestruz, a enfiar a cabeça na areia e a ignorar a desumanização que a sociedade reserva para os velhos que são ignorados, desprezados, estigmatizados, abandonados.

“França estava a tornar-se um país moderno, de que só um país autenticamente moderno seria capaz de tratar os velhos como puros dejetos, e que tamanho desprezo pelos antepassados teria sido inconcebível em África ou num país da Ásia tradicional.” (Michel Houellebecq, in A possibilidade de uma ilha)

Muitas mulheres disseram que os filhos e os netos não têm o menor interesse nas suas vidas e histórias e acusam os mais jovens de viverem numa permanente “egotrip”, interessados apenas neles próprios, sem tempo ou disponibilidade para os outros, especialmente para os mais velhos. Assim, poder-se-á entender melhor porque motivo as mulheres mais velhas passam a valorizar muito as amizades. Na verdade, sentem-se cuidadas, apoiadas e amadas pelas amigas que contribuem para a sua libertação e realização do projeto de “bela velhice” porque escutam bonito, riem-se juntas na “melhor idade”, ou seja, quando as mulheres conseguem ser livres.

“Para muitas mulheres, que sabem valorizar outros capitais, o envelhecimento pode ser um momento de inúmeros ganhos, realizações, conquistas, descobertas, amadurecimento, cuidado, prazer e aceitação das mudanças nas diferentes fases da vida.”

Destaco duas ideias-chave:

“Cada um de nós é o único autor e o único responsá­vel por construir, passo a passo, precoce ou mesmo tardiamente, a própria “bela velhice”.”

“A beleza da velhice está, exata­mente, em sua singularidade, na possibilidade de ser inventada por cada um de nós.”

Os velhos de hoje e os de amanhã têm que ser os protagonistas das suas vidas, fazer-se ouvir, pugnar pelos seus direitos, refutar todos os “ismos” (racismo, sexismo, idadismo, …), construir um mundo para todas as idades, menos desigual, mais humanizado.

Em abril, mês da Liberdade, queremos reforçar, em Portugal e no Brasil, a revolução poética da “bela velhice”.

Inspiremo-nos em alguns versos intemporais da canção “O que faz falta” de Zeca Afonso:

 

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta

O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder a malta
O que faz falta

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