A morte

Os mortos não se queixam, não têm sindicato, e não votam. São números soltos. Ser enterrado, sem testemunhas, é mais dramático e revoltante do que triste. O abandono reflecte uma sociedade sem valores, com o egoísmo no seu melhor, com a perda do respeito pela dignidade humana.

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  • 19:44 | Segunda-feira, 28 de Novembro de 2022
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Em Portugal, desde 2021, 421 corpos não foram reclamados por familiares ou amigos. Destes, 24 são fetos. E no ano em curso, até Setembro, o número já atinge a cifra de 188. Mais por abandono do que por insuficiência económica.

Neste último caso, é bom que os cidadãos saibam que a legislação prevê, e muito bem, o funeral social, que garante condições mínimas de dignidade a quem teve a desdita de partir.

Esta realidade não preenche primeiras páginas, não abre notícias nas televisões, nem suscita debates. Aparece nos rodapés, ou enroladas noutras, e por isso só um olhar mais atento descobre.


Os mortos não se queixam, não têm sindicato, e não votam. São números soltos. Ser enterrado, sem testemunhas, é mais dramático e revoltante do que triste. O abandono reflecte uma sociedade sem valores, com o egoísmo no seu melhor, com a perda do respeito pela dignidade humana.

Baixar à terra, empurrado pelos homens da carreta, sem mais ninguém por perto, é uma imagem medonha, um momento devastador. É o deslaçamento dos vínculos naturais, supostamente existentes num ser humano, alicerçados no afecto e na razão que, no caso presente, não são indissociáveis, e que nos mantêm como comunidade merecedora de crédito. É a corrosão absoluta da solidariedade e do respeito mútuo.

Não é só o abandono, é o coração duro, o gesto desprendido, a insensibilidade suja. Não há palavras certas e claras, todas elas são baças e trémulas.

O mundo anda torto e o Homem passeia-se sem vestes, nu, cru. Este mundo desmorona-se e o Homem cava a sua própria sepultura.

A realidade dos desprotegidos é uma chaga social que, culturalmente, nos diminui. Nem tudo é droga, nem tudo é vício, nem tudo é crime. Há muita má sorte, muita falta de memória, muito interesse comezinho, muita vida sem rodas, muito caminho de pedras, muita montanha íngreme.

 

Houvesse conta bancária, e talvez o desapego baixasse estes números da vergonha. Estamos a construir o futuro, desfazendo o presente, egoístas, centrados no luxo e no supérfluo, agarrados às marcas, cegos com as luzes do Natal comercial.

E desenganem-se os que julgam nada contribuírem para este céu negro. Uns mais, outros menos, ninguém sai imune desta selva. Com os dois pés, ou só com um, todos estamos neste atoleiro de culpas e transgressões.

Acendamos um círio, em memória do que partem sozinhos, sem uma lágrima, um ai, um queixume.

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Publicado em Opinião