A falsa moral da ingratidão

Se, após décadas de poder, uma autarquia permanece entre as mais pobres do país, então a pergunta legítima não é “por que o povo foi ingrato?”, mas sim “por que o autarca falhou?”.

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  • 14:09 | Quinta-feira, 23 de Outubro de 2025
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A acusação de “ingratidão do povo” é um expediente recorrente em política — sobretudo quando o poder muda de mãos. Mas, no caso viseense, a inversão do argumento revela algo mais profundo e justo: talvez não tenha sido o povo o ingrato…

Quando um político é derrotado nas urnas e os seus apoiantes clamam por “ingratidão”, estão a confundir lealdade pessoal com responsabilidade pública.

A política não é uma relação de devoção, é uma relação de serviço.

Ninguém deve ser reeleito por ter “dado a vida à causa”, mas por ter melhorado a vida dos outros.


Se, após décadas de poder, uma autarquia permanece entre as mais pobres do país, então a pergunta legítima não é “por que o povo foi ingrato?”, mas sim “por que o autarca falhou?”.

A verdadeira ingratidão não é do eleitor que exige mudança, mas do autarca que, tendo recebido a confiança e os recursos da população, não os transformou em progresso e desenvolvimento.

É ingrato o autarca que, amparado pelo voto, não correspondeu à esperança coletiva, deixando toda uma sociedade na estagnação e no retrocesso.

É ingrato quem faz da autarquia o prolongamento da própria biografia, e não o instrumento do bem comum.

Dizer que alguém “dedicou a vida à política local” não basta — a questão é com que resultados.

A permanência prolongada no poder não é virtude por si mesma; pode ser sinal de acomodação, clientelismo e ausência de renovação.

Dedicar a vida ao poder sem o transformar em desenvolvimento e progresso é como ocupar indefinidamente o leme de um barco que nunca saiu do porto — e depois culpar o vento por não navegar.

A democracia não é um contrato de gratidão eterna, mas um pacto de avaliação constante.

O voto é um veredito, não um favor.

Se o povo muda, é porque quer progresso — e isso é sinal de saúde cívica, não de traição ou ingratidão.

A alternância é até mesmo o modo como a comunidade recorda aos governantes que o poder é emprestado, não concedido.

Não nos podemos também deixar de lembrar que a gratidão é uma relação de ordem pessoal e afetiva, mas a política é uma relação funcional, baseada em resultados.
O autarca que deixa o concelho pobre após décadas de governação não foi vítima da ingratidão popular; foi ele quem demonstrou ingratidão para com a confiança que o povo nele depositou.

O eleitorado, ao substituí-lo, apenas restituiu o sentido original da política: servir a comunidade.

Acima de tudo o povo é soberano. E justo!

 

Pedro Henriques

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Publicado em Opinião