A crise do jornalismo é a crise da democracia

A insegurança no emprego, a par com os salários baixos praticados no setor, representa um obstáculo grave ao desenvolvimento da profissão e constitui um entrave ao próprio direito dos cidadãos de serem informados livremente: um jornalista que não consegue pagar as contas ou ter um mínimo de estabilidade no emprego está mais exposto às pressões de administrações menos escrupulosas e do poder em geral. Isso fere de morte a Liberdade de Imprensa, um dos mais determinantes pilares da nossa democracia

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  • 20:10 | Domingo, 21 de Janeiro de 2024
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Estava eu a matutar no tema desta crónica – a situação dramática dos mais de 150 trabalhadores do Global Media Group (GMG) ameaçados de despedimento, com muitos jornalistas e colaboradores do JN, DN, Jogo, TSF, Açores Oriental e as revistas “Evasões” e “Volta ao Mundo”, sem receberem o salário de Dezembro (a administração decidiu pagar, unilateral e ilegalmente, o subsídio de Natal em duodécimos durante 2024), – quando ouço, na Antena 1, a notícia da expulsão à força de um jornalista do Expresso de um encontro com André Ventura na Universidade Católica, a convite de associações de estudantes, por  alguns alunos e um segurança do Chega.

O Sindicato dos Jornalistas já exigiu às autoridades medidas contra este crime (público, desde 2018), inaceitável num estado de direito e pediu “uma punição exemplar para os agressores”. As associações de estudantes dizem que a presença de jornalistas foi da responsabilidade do partido. Mas, segundo o jornalista, a responsabilidade pela sua expulsão violenta foi partilhada. Há que apurar.

Já em 9 de Janeiro, o Sindicato dos Jornalistas (SJ) em comunicado de solidariedade com os seus camaradas da GMG e a convocar para a greve do dia 10, afirmava: “Nós, jornalistas, estamos na linha da frente contra o totalitarismo, a intolerância, a mentira, o boato, a manipulação, a ignorância”. E citava o secretário-geral da ONU: “a capacidade para criar desinformação a uma escala global e minar fatos estabelecidos cientificamente constitui um risco existencial da própria humanidade”. António Guterres referia-se aos mais de vinte milhões de publicações falsas, enganosas e negacionistas da pandemia do Covid-19 detectadas nas redes sociais, alimentadas por dirigentes políticos criminosos de extrema-direita, como Trump, Bolsonaro e outros ídolos de Ventura.

Recorde-se, a propósito, as queixas do Público e da Rádio Renascença contra o Chega por utilizar abusivamente os seus logótipos em notícias falsas, apresentadas, como se fossem notícias daqueles “media”, na propaganda deste partido de extrema-direita, racista e xenófobo (com o rabo fascista de fora, mais uma vez, no congresso).


Em Portugal, apenas metade dos jornalistas têm um contrato permanente, o que “choca com a própria Constituição e Lei que proíbem a precariedade”, segundo o SJ, que lembra o óbvio:  “A insegurança no emprego, a par com os salários baixos praticados no setor, representa um obstáculo grave ao desenvolvimento da profissão e constitui um entrave ao próprio direito dos cidadãos de serem informados livremente: um jornalista que não consegue pagar as contas ou ter um mínimo de estabilidade no emprego está mais exposto às pressões de administrações menos escrupulosas e do poder em geral. Isso fere de morte a Liberdade de Imprensa, um dos mais determinantes pilares da nossa democracia.”

Foi certamente por isto que um dos nossos mais prestigiados radialistas, Fernando Alves, bateu com a porta, desabafando: “A TSF foi tomada por um grupo de gente que não é fiável”. Também o Conselho de Direcção da TSF enviou uma carta à ERC a denunciar “o perigo de ingerência da Administração na área editorial”.

Os viseenses ainda hoje têm saudades da extinta “Rádio NoAr”, onde se ouviam com mais nitidez os noticiários da TSF, para além das suas próprias notícias e reportagens, sem a qual não teriam sabido que Fernando Ruas tinha mandado os presidentes de juntas de freguesia correr à pedrada os fiscais do Ambiente ( “em sentido figurado”, claro).

O Jornal de Notícias (JN), com 135 anos de existência, é hoje o único jornal nacional com sede no Norte, Porto (e filial em Lisboa), depois do desaparecimento do Primeiro de Janeiro e do Comércio do Porto. O JN foi, durante muitos anos, o jornal com maior tiragem nacional, em grande parte devido à sua rede de delegações que nos informavam com mais rigor e qualidade do que alguns jornais locais. Em Viseu e na maior parte das localidades do Norte e Centro quase todos os cafés disponibilizavam aos seus clientes o JN. Até que surgiu o Correio da Manhã (CM), sensacionalista, a escorrer sangue das suas páginas, com um brinde dominical para os mais idosos: fotografias a cores de mulheres mais ou menos desnudadas. O JN reagiu, em 2003, com a edição “Centro” (para a qual fui convidado a escrever crónicas mensais durante dois anos). Há cerca de uma década, o JN encerrou quase todas as delegações, incluindo a de Viseu, servida por dois experientes jornalistas, Teresa Cardoso e Rui Bondoso. Um erro estratégico. Mas o JN continuou a ser um jornal de referência e a dar lucro (mais de 30 mil exemplares vendidos e 2,8 milhões de leitores), o que torna ainda mais grave o ataque ao seu património, a começar pela venda do icónico edifício da sede, no centro do Porto, por quase 10 milhões a accionistas chineses do GMG, e a presumível venda da colecção de arte.

 

 

O deputado do BE, José Soeiro, já perguntou onde para a colecção e o dinheiro. Mas os donos da Global Media não respondem. E nem sequer se sabe quem são, como lamenta a jornalista do DN, Fernanda Câncio, no seu artigo do dia 16: “Carta aos donos da Global Media (sejam lá quem forem)”. O empresário Marco Galinha vendeu o controlo da GMG a um fundo de investimentos com sede nas Bahamas, mas recusa dizer  a quem pertence.

Mariana Mortágua, em 2022, acusou Galinha de ingerência ilegal na direcção editorial e de ligações a um oligarca russo que detém o centro de sondagens Aximage. Galinha fez queixa contra ela por difamação, mas o Tribunal de Instrução não a levou a julgamento e condenou Galinha a pagar as custas do processo.  Mariana viu canceladas as suas crónicas no JN, a pretexto de “remodelação”. Também o ex-líder da bancada do BE, Pedro Filipe Soares, foi alvo de cancelamento das suas crónicas no DN, após ter escrito um artigo questionando um aparente esquema financeiro para “sugar até ao tutano, desmembrar, descapitalizar” um grupo de comunicação social, num hipotético “plano de transformação profunda do panorama dos media do país”, para uma “concentração dos media e a criação de poderes de extrema-direita, seguindo “o guião que vimos nos EUA e no Brasil”, (…) erodindo a democracia e os seus pilares”. Na cauda do artigo, surge uma Nota da Direcção,  em inflamada defesa do jornal e dos “acionistas, sejam eles quem forem”, que remata assim: “Sendo um texto de opinião, publique-se. Mas é a última vez”. Ficou claro?!… Fez-me lembrar o célebre escritor e jornalista dos EUA, Mark Twain, que com o seu fino humor disse: “(…) no nosso país, temos estas três coisas indescritíveis e preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca pôr em prática nenhuma delas”.

O jornal A Bola também já foi vítima de um despedimento colectivo após ser comprada por um fundo de investimento sediado na Suíça, o que está a ser contestado em Tribunal pelos trabalhadores que já tiveram decisões favoráveis. 

Rui Moreira, a pretexto do despedimento de 40 jornalistas do JN, recomendou ao governo (com apenas 2 votos contra a sua proposta, na reunião do executivo da Câmara Municipal do Porto), que crie a possibilidade legal do Poder Local participar em empresas de comunicação social, à semelhança do Estado central. Sabendo nós que um dos factores da crise da imprensa foi a diminuição da publicidade (caiu 2/3 na última década) ligada à expansão da Internet e da revolução digital, e se algumas autarquias já podem condicionar, como forma de pressão, a atribuição de publicidade do próprio município aos órgãos de comunicação social, esta via parece-nos perigosa. Também um grupo de empresários do Norte já se disponibilizou para salvar o único jornal do Porto. E a petição “Somos JN – Em defesa do JN, do jornalismo e das pessoas”, já ultrapassou as 6 mil assinaturas. Também foi a mobilização popular que impediu a venda do Coliseu do Porto a uma igreja com um curriculum duvidoso. Mas cabe ao Estado a principal responsabilidade na defesa da sobrevivência da “instituição” JN.

A Constituição da República (Artigo 38) torna imperativo  “a divulgação da titularidade  e dos meios de financiamento dos órgãos de comunicação social” e que o Estado assegure “a sua liberdade e independência perante o poder político e o poder económico, impondo o princípio da especialidade das empresas titulares (…), apoiando-as de forma não discriminatória e impedindo a sua concentração, designadamente através de participações múltiplas ou cruzadas”.

Ora, é precisamente disto que se trata. E se o Estado também tem o dever constitucional de “assegurar a existência de um serviço público de rádio e televisão”, não pode alijar responsabilidades relativamente à concentração da propriedade privada de jornais, nem a negócios pouco transparentes que coloquem em risco o pluralismo no sistema mediático nacional e, por arrasto, as liberdades de imprensa e de opinião.

O governo, apesar de em gestão, tem toda a legitimidade para resolver assuntos urgentes, como é o cumprimento da Constituição, e tudo fazer para defender o bem público que é a Informação.

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