2022 – centenário de escritores: Maria Ondina, Agustina, Saramago

Ao contrário de Agustina brilhantemente amarrada às escarpas do Douro e ao cinzento granítico do burguês e anglófilo Porto, Maria Ondina parecia não ter poiso certo, uma ave errante que voava para onde as leves asas a levavam.

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  • 8:41 | Quinta-feira, 20 de Outubro de 2022
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O ano de 1922 assistiu ao nascimento de três crianças que, muito mais tarde, fizeram da escrita e da literatura uma sua segunda pele. José Saramago foi último a ver a luz do dia já que nasceu a 18 de Novembro, quando Agustina Bessa-Luís completara já o primeiro mês de idade, pois veio ao mundo a 15 de Outubro. Quase a gatinhar, se não gatinhava já, e a balbuciar as primeiras palavras, crescia Maria Ondina Braga, ela que nascera mal o ano raiara, a 13 de Janeiro.

Partiram já os três, a última das quais, Agustina, 96 anos cumpridos, em finais de primavera, marcava o calendário o dia 3 de Junho de 2019. Nove anos antes, quando também a primavera se despedia, despedia-se Saramago a 18 de Junho de 2010. Bem mais nova, aos 71 anos de idade, no dealbar do século XXI, a 14 de Março de 2003, morria Maria Ondina Braga.

Saramago é Nobel de Literatura e as comemorações dos cem anos do seu nascimento avançam em velocidade de cruzeiro. Agustina, considerada pelo editor da Relógio d’Água como “a maior romancista portuguesa de sempre”, foi apresentada, em Serralves, na sessão de abertura das comemorações do seu centenário, como “uma das vozes mais inoportunas da literatura Portuguesa”. Por iniciativa da Imprensa Nacional, as obras de Maria Ondina Braga começaram a ser (re)publicadas, tendo sido dado a lume, em Junho deste ano, o primeiro volume.


                                                                    © JOSE CARLOS CARVALHO

Li Saramago. Desvaneci-me completamente com “No ano da morte de Ricardo Reis”. Reaprendi a urdidura da língua portuguesa no “Memorial do Convento”. Agustina acompanha-me e a ela volto muitas vezes. “A joia de família” (2001), que integra a trilogia “Princípio da incerteza”, serviu-me como uma espécie de guião para a escrita da minha dissertação de mestrado que teve por temática a educação numa instituição católica feminina. Agustina foi aluna das Doroteias. Eu também. O trabalho, defendido em 2005, tem por título: “Bata preta, cinto vermelho, gola branca: subsídios para o estudo do ensino privado em Portugal durante o Estado Novo”. Não posso esquecer o genial romance “Eugénia e Silvina”. Localizado em Viseu e tendo por personagem coletiva a família da baronesa da Silva, a célebre “Barbuda” com direito a retrato no friso das personagem ilustres patente na Câmara Municipal, narra primorosamente o processo que levou ao hediondo crime da Poça das Feiticeiras, que lançou a cidade para as primeiras páginas dos jornais da época. Respeitando criteriosamente os factos históricos, Agustina permite-se, como só ela se permitia, dissecar as vidas de todas e todos aqueles que passaram a personagens de romance.


 

Em tempo tive algum contacto com a escrita de Maria Ondina Braga. Nada de muito importante ou, quiçá, relevante, tanto mais que o seu nome mergulhou no baú do meu esquecimento. Eis se não quando, por mão de uma amiga catalã que investiga e escreve sobre escritoras portuguesas da segunda metade do século XX, Maria Ondina cruzou-se comigo. E descobri uma escritora que tinha de conhecer. Uma mulher peculiar, com uma vida tão singular como singular foi o que escreveu.

Ao contrário de Agustina brilhantemente amarrada às escarpas do Douro e ao cinzento granítico do burguês e anglófilo Porto, Maria Ondina parecia não ter poiso certo, uma ave errante que voava para onde as leves asas a levavam. Natural de Braga, aí frequentou o Liceu Sá de Miranda. Decidindo-se pelo estudo das línguas, optou por fazê-lo fora de Portugal, em França na Aliance Française e na Royal Society of Arts, em Inglaterra, onde se licenciou em Literatura Inglesa. Foi professora do ensino secundário em Angola, Goa e Macau, mas também perceptora em casas particulares. Como professora convidada lecionou na Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim.

No prefácio do 1º volume das obras completas de Maria Ondina Braga, José Cândido de Oliveira Martins refere: “ a [sua] deambulação cosmopolita contribuiu de forma decisiva para a construção do perfil de mulher que decidiu viver de forma invulgar, viajando intensamente pelo mundo. Esse comportamento é ainda mais ousado quando falamos de uma mulher educada numa cidade provinciana e convencional do Norte de Portugal. Decorre daqui o retrato de uma personalidade forte, livre e independente (…)” (JC Oliveira Martins, Obras completas de Maria Ondina Braga, 2022, p10). Ora, desta mulher forte, livre e independente pouco se tem falado quando se celebra o primeiro centenário do seu nascimento. Apesar da construção de um programa comemorativo: a Exposição documental “Em Vim Para Ver a Terra: Maria Ondina Braga, um olhar nómada”, patente na Galeria do Paço, em Braga; o III Congresso Internacional Maria Ondina Braga, “Cartografia (s) da memória e das emoções”(Janeiro de 2022- Universidade do Minho); publicação das suas obras completas pela INCM.

2022 tem sido, efetivamente, um ano da celebração da escrita. Não é todos os anos que se pode falar, ler, reler, descobrir, redescobrir três escritores. E que escritores! Uns com grande projeção e, se não lidos, pelo menos conhecidos do grande público. Outra, pela paradoxal timidez com que invulgarmente cursou a vida, objeto de pesquisa, investigação, reflexão e debate de académicos. Talvez esteja na altura de voltarmos a olhar para a escrita de “uma personalidade curiosa, aventureira e reflexiva, esse rico capital de experiências marcantes e de ávido diálogo de culturas (…) um perfil impar no panorama da literatura portuguesa da segunda metade do século XX” (JC Oliveira Martins, Obras completas de Maria Ondina Braga, 2022, p10).

 

(Fotos DR)

 

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