Contra a globalização da indiferença

“O homem não é uma árvore, não está preso à terra com raízes, mas tem pernas para andar.” (George Steiner)   Aconselhado pelo meu amigo Paulo, numa tarde chuvosa de Sábado, adquiri dois livros: Zona de Interesse (Martin Amis) e Número Zero (Umberto Eco). Assim que cheguei a casa, comecei a ler o livro de […]

  • 13:13 | Sábado, 30 de Abril de 2016
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“O homem não é uma árvore, não está preso à terra com raízes, mas tem pernas para andar.”

(George Steiner)

 


Aconselhado pelo meu amigo Paulo, numa tarde chuvosa de Sábado, adquiri dois livros: Zona de Interesse (Martin Amis) e Número Zero (Umberto Eco).

Assim que cheguei a casa, comecei a ler o livro de Amis, um romance soberbo que narra, na perspectiva dos seus responsáveis o quotidiano num campo de concentração durante a II Guerra Mundial. Recordei, com tristeza, a visita que fiz, há alguns anos, ao campo de concentração de Dachau, junto a Munique. Há livros que induzem a leitura de outros…Decidi ler também o livro de Herta Müller, Tudo o que eu tenho trago comigo, que relata a vida num campo de trabalho russo, de um jovem, oriundo da minoria alemã da Transilvânia.

O horror, a desumanização e o racismo são traços comuns a estes campos da morte, sejam eles alemães ou russos.

Visitei o Campo de Concentração de Dachau, numa tarde de neve no mês de dezembro. Vi os fornos, o Warten Zimmer (quarto de espera) para a câmara de gás, os montes de dentes de ouro, os chicotes, os beliches, as montanhas de corpos… Ficou-me para sempre gravada na memória a inscrição no portão de entrada no campo que serviu de modelo aos muitos que proliferaram durante o conflito: Arbeit Macht Frei…..

Campos da morte, das câmaras de gás, das pilhas de corpos, do genocídio de milhões de seres humanos…

Quando vejo imagens ou leio os relatos do quotidiano dos campos de refugiados, as condições degradantes em que se encontram milhares de pessoas – homens, mulheres, crianças e idosos – fazem-me lembrar, as comparações, ainda que excessivas, são inevitáveis, as descrições dos campos de extermínio do passado.

Os muros e o arame farpado voltaram. Na verdade, para sermos precisos, os muros nunca deixaram de existir. Aquando da queda do Muro de Berlim (1989), havia 16 muros e vedações em todo o mundo. O leitor tem ideia dos números atuais? Coremos de vergonha! Hoje, há quatro vezes mais barreiras físicas que têm como principal objetivo criar na opinião pública uma sensação de segurança nacional e de controlo do território (Elisabeth Vallet, Borders, Fences and Walls State of Insecurity?).

Nuno Rogeiro, especialista em assuntos estratégicos e geopolítica, descreve um desses locais:

“ E vamos à «Selva» («La Jungle»).

O nome é apropriado. Também em Calais, é o mais conhecido dos megacampos ‘informais’: uma espécie de arquipélago com nove ou dez ilhas de refugiados e imigrantes económicos, ou simples vagabundos ou sem-abrigo, ocupando lixeiras, baldios ou simplesmente em campos não reclamados e edifícios abandonados ou em ruínas. A «ilha» principal era um antigo depósito de lixo na clareira de um bosque, a três quilómetros da cidade, onde se instalou uma espécie de bairro de lata, ou acampamento tribal.” (In Menos que Humanos, P. 187, Editora D. Quixote).

Ninguém pode ficar indiferente a esta realidade que nos entra em casa todos os dias. Uma realidade que escancara as desigualdades que serviram de rastilho aos movimentos de populações sejam refugiados ou emigrantes económicos.

Pior do que a indiferença é o medo, potenciado pela sensação de insegurança que alastra na Europa em resultado dos recentes atentados de Paris e Bruxelas ou os mais distantes ataques às Torres Gémeas e em Madrid, na estação de Atocha.

Há um perigo iminente de nós, os europeus, criarmos uma fronteira interior em relação ao outro, seja ele um imigrante ou um refugiado. Não podemos permitir que se confundam e coloquem no mesmo saco os refugiados e os terroristas, sob pena de podermos estigmatizar os primeiros que fugiram, em muitos casos, da violência que os segundos lhes infligiram nos seus países de origem.

A Europa não tem feito tudo bem, mas custa-me aceitar que algumas vozes culpem os líderes europeus pela radicalização de homens e mulheres que engrossam as fileiras de movimentos como o Daesh. A Europa é, apesar de todos os seus constrangimentos e limitações, um legado cultural e civilizacional único do qual nos devemos sentir orgulhosos. Eu tenho orgulho em ser português e europeu.

Não podemos enfiar a cabeça na areia, como a avestruz, perante os múltiplos desafios decorrentes da pressão migratória. O desenho de uma política comum de imigração é uma urgência.

Durante o ano de 2015 ocorreu o maior movimento de refugiados na União Europeia e a maior tragédia humanitária desde a II Guerra Mundial.

A Alemanha, muitas vezes criticada pelos seus parceiros, tem, na minha óptica, reagido bem à “crise dos refugiados”. A senhora Merkel tem puxado pelos galões e a Alemanha dá o exemplo de solidariedade, trabalhando na integração dos refugiados, proporcionado condições de alojamento e promovendo o ensino da língua.

Um apoio humanitário que poderá revelar-se fundamental na indeclinável estratégia de equilíbrio da sua pirâmide demográfica, colmatando as necessidades de mão-de-obra, numa Europa que envelhece e que, se não se reinventar, perece. Um exemplo, ainda que imperfeito, que conjuga inteligentemente a solidariedade internacional com o interesse demográfico nacional.

Esta atitude positiva dá corpo à afirmação de Tony Judt: “o futuro da Europa ou será em termos alemães ou não será de todo.”.

 

Tony Judt, Uma Grande Ilusão? Um Ensaio Sobre a Europa. Edições 70.

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