Fábula adaptada ao "por aí fora…"

Era uma vez uma fábula famosa, Alimentícia E moralizadora, Que, em verso e prosa, Toda a gente Inteligente Prudente E sabedora Repetia Aos filhos, Aos netos E aos bisnetos. À base duns insectos De que não vale a pena fixar o nome, A fábula garantia Que quem cantava Morria De fome. E, realmente… Simplesmente, Enquanto […]

  • 9:36 | Domingo, 09 de Junho de 2019
  • Ler em 2 minutos

Era uma vez
uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda a gente
Inteligente
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.

E, realmente…
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.

Miguel Torga
Diário VIII,1956


“A fábula é uma composição literária em que os personagens são animais que apresentam características humanas, tais como a fala, os costumes, etc. Estas histórias são geralmente feitas para crianças e terminam com um ensinamento moral de caráter instrutivo.”

Escrito isto, deixamos esta recriação da fábula de La Fontaine, “A Cigarra e a Formiga”, a ver se “toda a gente inteligente, prudente e sabedora” a repete a seus rebentos, no pressuposto básico de que é “alimentícia e moralizadora”, o que, como é sabido, quando a moral dá a mão à gamela, ouvindo-se um clic breve da espinhela quebrada, logo de seguida se ouve o sssssssssssss subserviente do rastejar reptilíneo, o que para alguns, mal “levantados do chão”, nada tem de extraordinário, sendo até praxis modelarmente corrente.

Também esta fábula contém um ensinamento moral instrutivo. E qual é ele? Se atentarmos na data do seu escrito, 1956, percebemos que o poeta vive o de má memória período do Estado Novo, que vai de 1933 a 1974, ou seja, aquele que foi vigente durante 41 anos de salazarismo e marcelismo.

Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Rocha, médico com coluna vertebral e consutório à Portagem, em Coimbra, opositor à ditadura e perante a asfixiadora Censura, apenas nos diz, invertendo parcialmente o sentido primicial da fábula, que quem cantava morria de fome e quem calava morria de fartura, que o mesmo é dizer: todos os opositores ao regime, reprimidos por não calarem o seu protesto, por ele eram perseguidos, alguns presos, outros exilados (vidé Aquilino Ribeiro, duas vezes preso e três vezes exilado), torturados e até mortos (sem ir mais longe, vidé Humberto Delgado, opositor a Salazar nas eleições fraudulentas de 1958, assassinado pela PIDE, em Olivença, a 13 de Fevereiro de 1965)… e porém, nada os demovia de fazerem ouvir bem alto a sua indignação, o seu protesto, a sua contestação. Por isso caro pagaram, mas “morreram de pé”, sem cangotes nem antolhos.

Por seu lado, os outros, calados, anuentes, cúmplices no seu silêncio… tinham a fartura como recompensa.

De facto, de tão gordos ou inchados, alguns até corriam o risco de dilatar tanto o estômago que este, ao comprimir a região do diafragma, poderia provocar a morte por asfixia. Qualquer gastroenterologista o sabe, ou mesmo um clínico geral…

Mas morreriam de fartura. Fartura rastejante e amoral, mas fartura…

Este fenómeno, se transportado para a actualidade, começa a viver-se por aí fora e a irromper, não de onde mais se esperava, dos desprotegidos da vida, mas sim de sectores sócio-profissionais, sem necessidades materiais, apenas de vista turvada (e enviesada) pela ganância, pela cupidez e pelo culto do tostão.

Andam por aí, a fazer de pilares sociais (em pinho “bichado”) e pelo que mostram, são baratos, de consciência esconsa, coluna mole e mão direita hirta, convulsa e côncava, estendida ao óbolo esportulado, perdulário e garantido do poder instituído, para si e/ou seus.

Paulo Neto

Gosto do artigo
Publicado por
Publicado em Editorial