A globalidade e a alma, a memória e a carteira

Claro que é isso. A aldeia global finissecular estragou uns quantos que andam por aí a lixar-nos a todos porque, com o novo conceito, esfolamo-nos a trabalhar, pagamos para o fazer e nem sequer conhecemos o patrão que pode ser qualquer Goldfinger ou Goldman sito nas Bahamas...

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  • 13:14 | Quarta-feira, 16 de Dezembro de 2020
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A aldeia global foi um conceito interessante. Muita gente gostou da ideia. Ser cidadão do mundo estacionado no seu bairro era uma aventura atraente. Ter um amigo em Istambul e uma amiga em Toronto ou na Malásia – que nunca conheceria pessoalmente – era uma exaltação. Aceder à Biblioteca de Washington através de um clique era um sibaritismo. Investir as poupanças em Wall Street era um ticket para o pré clube dos milionários. Viver como os gauleses sem nunca ter visto a torre Eiffel era um deslumbramento. Beber pilsen como os checos sem saber onde fica Praga era uma emoção. Comer salsichas bratwurst dos teutónicos fazendo de contas que tinham sido enchidas em Tortosendo era uma arteirice. Ter um produto tóxico nas Cayman ou um Cayman na garagem… era tudo muito atordoante e muito superior à velha rábula do gato maltês que tocava piano e sabia francês.

Mas – esta conjunção adversativa é muito incómoda – houve quem avisasse. O Saramago avisou. Lembram-se da “Jangada de Pedra”? Ah, nunca leram! Pois está na altura de se remirem dessa grave lacuna… Porém, como era comunista logo se tornou suspeito para quantos acham que gordura e inchaço são a mesmíssima coisa.

Hoje, que todos começámos a perceber como a “globalidade” nos roubou a alma, a memória e a carteira, ansiamos voltar a pertencer a um território, uma região, um concelho, quase com guardas fronteiriços de atalaia à nossa identidade. Comer cozido à Portuguesa com reco cevado a lavagem, nabo, cenoura, couve e batata da horta e azeite do nosso olival. Tinto da velha cepa. Pita pedrês do nosso galinheiro e vitela do nosso lameiro. É que, à parte que me toca, tal cozido com porco andaluz, nabo galego, cenoura belga, batata romena, azeite chileno, tinto napolitano, pita da indonésia e vitela made in USA, não me cheira nem me sabe… Mas é global. Lá isso é.

Até já tenho saudades de ler o Borda d’Água e o Seringador para perceber quando o frio arreganha e o calor entorpece; ver os filmes que o Martinho do Vicaínho trazia na caminheta e passava no velho clube, uma vez por mês e de amor ou couboiada spaghetti ; ler O Eco do Andurrial, casamentos, bodas de ouro e funerais. Ouvir a Emissora Nacional. Ir à feira quinzenal comer torresmos nas frigideiras encardidas por toneladas de unto sem espreitar por cima do ombro à cata da asae de má memória e péssima moda bruxelense ou bruxuleante. Cruzar-me com a Brízida, a Clarinha, a Eulália e a Adosinda e não com a Cátia Vanessa, Sónia Andreia e Cláudia Stéphanie…


Caro leitor, perdoe-me o estado febril adregado em desvario de saudade (que não saudosismo), mas afinal que semelhanças havia entre Viriato e Julius Caio? Entre D. João VI, Napoleão Bonaparte e Wellington? Entre Aquilino, Ferreira de Castro, Agustina Bessa-Luís e Rushdie, Pamuk e Vargas Llosa? Entre Agostinho Neto e Obama? Entre Oliveira e Costa e Madoff? Entre Costa e Merkel? Entre Biden e Trump?

Claro que é isso. A aldeia global finissecular estragou uns quantos que andam por aí a lixar-nos a todos porque, com o novo conceito, esfolamo-nos a trabalhar, pagamos para o fazer e nem sequer conhecemos o patrão que pode ser qualquer Goldfinger ou Goldman sito nas Bahamas, Ilhas Cayman, Bermudas, Turks e Caicos, Liechtenstein, Suíça, Ilhas do Canal, Mónaco, Luxemburgo ou Ilha da Madeira… Fraude & fisco é seu sobrenome.

Este Editorial parece um desconcerto? Pois parece. Tal e qual a vida moderna. Desconchavadamente moderna, dizem eles…

 

(Foto RD)

 

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