“O PORTUGUÊS EM FRANÇA”

  (In memoriam da Guerra de 1914-1918) Notas e transcrição de Alberto Correia A saborosa composição poética que abaixo se transcreve e cujo título encima esta crónica não passa de um curioso divertimento de matriz literária composto em horas mortas na rectaguarda das linhas da frente de combate enquanto o soldado, seu autor, aguardava uma […]

  • 13:24 | Segunda-feira, 12 de Janeiro de 2015
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(In memoriam da Guerra de 1914-1918)

Notas e transcrição de Alberto Correia


A saborosa composição poética que abaixo se transcreve e cujo título encima esta crónica não passa de um curioso divertimento de matriz literária composto em horas mortas na rectaguarda das linhas da frente de combate enquanto o soldado, seu autor, aguardava uma nova chamada para a linha das trincheiras, normalmente decorridos os habituais seis dias de merecido descanso.

Deve-se o presente texto a José Augusto de Matos, um dos soldados que, integrado na 4.ª Companhia do Batalhão de Infantaria N.º 34, embarca no Cais de Alcântara, em Lisboa, fazendo parte do primeiro contingente do Corpo Expedicionário Português (CEP) que desembarca em Brest nos primeiros dias do mês de Fevereiro de 1917, de onde arranca, de comboio, para a Flandres.

José Augusto de Matos nasceu em Carapito, no beiraltino município de Aguiar da Beira, em 31 de Dezembro de 1895, camponês por destino porventura, não fora a convocatória que o leva, com mais dois companheiros da sua aldeia a Tancos, para a instrução militar que antecede a partida para França.

Teve cedo a experiência das trincheiras, teve a sorte de não estar na linha da frente na trágica batalha que teve lugar na Planície de La-Lys, mas experimentou os rigores da guerra nos campos de Merville, Ville-Chapelle, Étaples, Laventie, Lacouture e outros que ele nomeia em fragmentários textos de memórias escritos em campanha, numa miúda letra de uma tinta azul arroxeada a preencher as páginas de um pequeno Caderno de Notas que ele guardou e a família devotadamente conserva.

A escolaridade cumprida na aldeia até ao exame de uma Terceira Classe acompanhada por exigente professor e decerto uma natural apetência para as letras a que não deu seguimento, que adolescência e juventude lhe exigiram logo a entrega a ofícios vários de camponês ou de pastor, explicam este episódico tempo de escrita, em campanha, não restando qualquer outro testemunho desta prática, perdidas as cartas que mais tarde terá escrito para a família durante ausências outras, que não a da guerra. E tudo leva a crer que terá sido esta faceta, associada sem dúvida ao seu desempenho nas linhas que conduzirão à promoção no posto de 1.º Cabo no dia 21 de Junho de 1917.

Regressará a Portugal apenas no final da guerra. Terá vida longa, outras odisseias, acabando seus dias na sua terra de Carapito.

 

O texto abaixo transcrito, arremedo da sua arte de poetar em vários momentos utilizada para descrever a viagem para França ou a vivência nas trincheiras conduz-nos a olhar essa tessitura social do soldado português arrastado para a Flandres, camponês adiado, tanta vez analfabeto, que nas raras horas de repouso, quando na linha da frente, num regresso às aldeias meio abandonadas, às granjas que serviam de pouso, se ia governando por gestos e uma mimese de palavras arregimentadas, quanto baste, para o transitório relacionamento que tinha a ver com a compra de pão, a busca de platónicos ou carnais amores de que guardarão depois suave recordação que só o longo tempo de vida irá sorvendo. Assim deve entender-se o “glossário” tão saborosamente desenhado pelo 1.º Cabo José Augusto de Matos nas quadras escritas em horas de remanso em que evocaria, olhando as geladas campinas de Flandres, as paisagens da terra natal onde temia, às vezes, não voltar.

 

 

 

O Portuguez viu-se em France

Não sabendo falar francês.

Passei muita necessidade,

Encontrei muita rudez.

 

Ao pão chamam – diu pain,

À batata – pome de terre,

Às trincheiras chamam-lhe – from,

À guerra chamam – la guerre.

 

O feijão é – arecu,(por haricot)

O peixe chamam – poáson,

A água chamam – de lou,

Ao navio chamam – baton.

 

À cidade chamam – világe,

À casa chamam – maison,

Ao irmão chamam-lhe – frér,

Ao rapaz chamam – garçón.

 

À panela chamam – marmite,

O prato é – aciaite,

A faca chamam – cotou,

A toalha – cervelhaite.

 

Ao doente chamam – maláde,

À cama chamam – cochi.

Eu não sei – je ne se pa,

Não compreendo – non compri.

 

As calças são – pantalonas,

Ao chapéu chamam – croquete,

À camisa chamam – chemise,

Aos peúgos chamam  – choucéte.

 

Às botas chamam – botines,

Ao lenço – mouchua,

À mantas chamam – cobertes,

Eu não sei – je ne se pa.

 

Bom dia chamam – bom jour,

Boa noite – bom noí,

Até amanhã – até dimam,

Até logo – arvouroi. (por au revoir)

 

Caneta – porte plume,

Ao leio chamam-lhe – lit,

Ao lápis chamam-lhe craion,

À panela chamam – marmite.

 

Ao garfo chamam –  fruchete,

Ao copo chamam-lhe – vairre,

Ao vinho chamam – diu-van,

À cerveja chamam-lhe – biérr.

À tinta chamam-lhe – encre,

Ó papel – papier,

À carta chamam-lhe letre,

Ao regedor chamam-lhe – mair.

 

À carne chamam – viande,

Ao queijo chamam – fourmaje;

À garrafa chamam – botelhe,

À idade chamam – áge.

 

À comida chamam – mangir,

Aos fósforos – alumete,

Ao pescoço chamam – cu,

À cabeça chamam – téte.

 

Ao gato chamam – cha,

Ao cão chmam – chean,

À caixa chamam – boáte,

Ao vinho chamam – diu-van.

 

Às cero(u)las chamam – calçon,

Ao calor chamam-lhe – chou;

À galinha chamam-lhe pul,

À água chamam – de-lou.

 

Chamam à taberna estaminet.

Ao jogo chamam – jogue,

Ao bêbado zigue-zágue,

Ao namoro fiancé.

 

Faz favor – sirvoplé,

Isso sim chamam – uí;

Eu não sei – je ne se pá,

Não compreendo – non compri.

FIM

Em campanha, 17-6-1918

José Augusto de Matos, 1.º cabo, Batalhão de Infª n.º 34.

 

 

 

 

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