O ENTERRO DO “RICO IRMÃO”

  (Singular auto carnavalesco que anualmente se realiza no Touro, Concelho de Vila Nova de Paiva, na noite de Terça-feira Gorda, inteiramente interpretado por habitantes da aldeia de acordo com os tradicionais padrões da queima de um antropomorfo depois de julgada a sua vida.) Quase posso afirmar com verdade que o Enterro do “Rico Irmão”, […]

  • 17:09 | Sábado, 21 de Fevereiro de 2015
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(Singular auto carnavalesco que anualmente se realiza no Touro, Concelho de Vila Nova de Paiva, na noite de Terça-feira Gorda, inteiramente interpretado por habitantes da aldeia de acordo com os tradicionais padrões da queima de um antropomorfo depois de julgada a sua vida.)

Quase posso afirmar com verdade que o Enterro do “Rico Irmão”, no Touro, Concelho de Vila Nova de Paiva, pode considerar-se a última manifestação do ciclo entrudesco em Portugal já que o seu eclodir se gera cerca de duas horas antes da meia-noite de Terça-feira Gorda e se encerra sobre essa hora do dobrar da noite sobre o quaresmal tempo de Quarta-feira de Cinzas.


Quando ontem cheguei à aldeia já o pequeno Adro da Capela de Santo António estava cheio. Gente da terra, gente de fora que viera, o bailarico costumeiro, lenha farta a arder numa fogueira, uma fonte cantando lá ao pé e um céu estrelado como nunca o vi, um azul negro e macio parecendo naquela noite mais perto, talvez aconteça sempre assim, como antigamente, quando foi o tempo de inventar certos mistérios, como o desta noite mística e sacrificial.

Sobre a hora marcada chega em festa o Rico Irmão. Vem aos ombros dos rapazes, filho da aldeia que voltara de aventurosa e não feliz viagem, Seca e Meca calcorreados, o pão negado a cada porta e eis que volta esperançado mal sabendo que sobre si carregava estranha maldição.

Conta no Adro a vida dura que levara, pontapés da sorte, esconjuros de mulheres ao passar à sua porta, ladrar de cães sobre o seu rasto. Mais não pede agora senão ali viver em paz.

Ergue-se o povo contra o renegado. Clama o Juiz entre impropérios:

Que sentença iremos dar?!…

A morte!… A morte!… Ecoa a voz do povo.

Levanta-se alguém de entre a gente, advogado de defesa é chamado:

Alto!… Seu constituinte fazia ler Testamento antes assinado.

Ao meu amigo, F. , deixo… E enumerava o quinhão que lhe deixava.

O Rico Irmão era afinal possuidor de uma fortuna que ali estava em letra de forma escriturada e distribuída ficava agora pelos irmãos que contra ele se levantaram.

Impiedosa aquela turba não acreditou nesse falar que julgou de pantomina e outra vez a morte requereu. E só quando o nó da corda de uma forca se apertou, só quando o corpo inerte pousou nas tábuas do esquife, só quando se ouviu um piedoso entoar de ladainha é que aquele povo acordou e ouviu-se o choro das mulheres clamando a rua inteira a saudade, afinal, do Rico Irmão cuja fortuna se perdera entre os outeiros da arredia serra onde nascera.

Tarde demais. As águas do Rio Covo arrastavam já as cinzas do Rico Irmão.

E a vida na aldeia em breve voltaria a ser igual.

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