AS TAMANQUINHAS DE VISEU – (Dos louvores que Aquilino Ribeiro lhes tece)

  “Indústria” de raiz medieva, o calçado de couro e madeira ganhou e foi mantendo ao longo do tempo um singular privilégio de uso em ambientes rurais, porventura devendo tal mérito aos módicos custos do seu fabrico e à sua melhor adaptação aos rústicos caminhos de pé posto onde garantia diferente conforto às passadas no […]

  • 17:03 | Domingo, 26 de Abril de 2015
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“Indústria” de raiz medieva, o calçado de couro e madeira ganhou e foi mantendo ao longo do tempo um singular privilégio de uso em ambientes rurais, porventura devendo tal mérito aos módicos custos do seu fabrico e à sua melhor adaptação aos rústicos caminhos de pé posto onde garantia diferente conforto às passadas no rijo pedregulhal.

Tamancos, às vezes ferrados com poderosa tomba de metal ou tão só pregueados de resistentes brochas, comprados em tenda de mercado ou mandados fazer em tamanqueiros de aldeia a partir das empenhas residuais de umas botas velhas que assim adquiriam nova serventia, eram, no geral, de utilização masculina.


As mulheres, lavradeiras de teres, “zagalas, boieiras, raparigas das jornas”, como a outras chama Aquilino, calçavam tamancas de verniz, pau de amieiro e pregueado miúdo, que começavam por usar ao domingo e mais tarde as deitavam a cote reforçando-as com um pregueado de brochas que evitava o franco desgaste nas calçadas da aldeia.

Assim nos aparecem nas Terras do Demo que Aquilino povoa de tão vivíssimas figuras que mais se nos afigura estarmos de par com elas, Rita, a mulher do Chico Brás, a Zefa do Alonso, Feliciana, ama de padre, Rosa Gaudêncio, Florinda, a Fome-Linda, como lhe chamou o ganancioso do sogro, Teresa Zabana, incansável andarilha nos seus quefazeres de alcoviteira, e Glòrinhas, a pouco afortunada Glòrinhas que um mais feliz destino merecia ter.

De Rita desenha Aquilino retrato bastante. Generosa, perdoa ao marido a traição do pobre e vai resgatá-lo quando, vingado e mal-ferido em rixa de romaria, se acolhe a casa de amigo onde corre a procurá-lo, descalça, que as tamanquinhas, socas também chamadas, lhe sofreavam os passos. E num momento de descuido, quando ninguém se importava com ela, safou as sòquinhas dos pés, enfiou cada uma em sua mão, e meteu de vereda para casa do Gonçalo (Terras do Demo).

De tamanquinhas de verniz se calçava a Zefa do Alonso, a tal que causara a perdição do Chico Brás e os azedumes de Rita, iludindo com a miúda graça do seu estrepitoso tropear na madrugada, a caminho da capela, a folganza de uma noite de pecado. Naquelas noites de encontro, seroava como sempre, e, ao romper da manhã, mal o padre tangia o sino, a tamanquinha dela era a primeira a acordar as ruas adormecidas. Como conta Aquilino (Terras do Demo).

Feliciana, a dedicada ama de Padre Jesuino, lá anda, no seu quotidiano cirandar, tamanquinhas por uso também, a leveza de seus passos ainda ligeiros tropeando no soalho de castanho da residência como dá conta Aquilino. Estreloiçaram as tamanquinhas de Feliciana e Jesuino desviou-se da janela (Andam Faunos pelos Bosques).

Mocinhas namoradeiras, às vezes aprendizas de costura, essas mercavam nas feiras da vila as renomadas tamanquinhas de Viseu de mais fino lavor e era com elas que, perluxosas, saracoteavam nos bailaricos do Adro nos domingos de Verão ou passeavam, donairosas, em terreiro de romarias.

Glòrinhas era uma destas moças, na Seitosa. É assim que Aquilino a emoldura em retrato numa tarde já alta de um luminoso dia de uma Páscoa antiga. A Glòrinhas estava naquele dia toda faceira, boa saia de merino de quatro panos justa na cinta, chambre de baptista com pregas de renda, tamanquinhas de Viseu em verniz com forro verde e pregaria amarela, das que deixam o peito do pé à mostra e parece mesmo milagre dar-se passo assim calçado. Rico cordão ao pescoço, faltava-lhe só chapéu para ser uma fidalga (Terras do Demo).

E é Aquilino quem celebra, por fim, a destreza dos mestres tamanqueiros de Viseu que, com seu engenho, souberam tirar de um já inanimado tronco de amieiro estas servis e gráceis criações que, na metáfora, parecem incarnar o particular jeito de ser das suas usufruidoras.

Nas oficinas de tamanqueiro, os artífices, apoiando o formão no úmero, desbastavam com perícia e agilidade inconcebíveis o troço de pau donde deviam brotar as tamanquinhas lépidas e palreiras, orgulho da indústria local (Andam Faunos pelos Bosques).

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